Publicado originalmente em 16 de setembro de 2022
O aniversário de 200 anos da independência do Brasil de Portugal em 1822 foi celebrado pela classe dominante do país, liderada pelo Presidente Jair Bolsonaro, com um espetáculo vil de integração “cívico-militar” e tradicionalismo. Bolsonaro conseguiu integrar o alto comando militar nas manifestações direitistas que exigiam a anulação dos resultados das eleições gerais de outubro para garantir sua continuidade no poder.
Estes esforços ganharam o apoio tácito de Portugal, cujo presidente apareceu ao lado do chefe de Estado fascistoide do Brasil, e do imperialismo do EUA, que despachou navios de guerra para participar de manobras comemorativas navais diante das praias do Rio de Janeiro.
Enquanto isso, a oposição liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) cancelou as manifestações de oposição planejadas para a data e se concentrou em exaltar a bandeira nacional verde-e-amarela. A oposição acusou Bolsonaro de “sequestrar” uma celebração supostamente amada pelo povo, que teve como um de seus destaques o transporte cerimonial, de Portugal, do coração preservado em formaldeído de Dom Pedro I, o príncipe regente português que em 1822 desafiou seu pai, o rei Dom João VI de Portugal, e declarou o Brasil uma nação independente, tornando-se seu primeiro imperador.
Para convencer o público da falsa “popularidade” das celebrações, que em sua maioria são ignoradas pelos trabalhadores e atendidas apenas pelas famílias dos militares, o PT calou todas as referências ao chamado “gritos dos excluídos”, que tem sido realizo há décadas por seus “movimentos sociais” e sindicatos, exercendo na prática um boicote.
Todo o evento reacionário teve como centro a celebração da “unidade” brasileira, acima de tudo sua integridade territorial, que contrasta com a fragmentação das regiões das Américas colonizadas pelos espanhois. Para todos os representantes da classe dominante, essa “unidade” confere ao Brasil um potencial único para projetar poder geopolítico. O PT tem acusado Bolsonaro principalmente por um baixo desempenho nas disputas “entre grandes potências”, com o ex-presidente Lula lançando sua candidatura presidencial no ano passado em uma viagem à Europa, onde ele procurou o favorecimento de senhores da guerra como Emmanuel Macron e Olaf Scholz.
O chauvinismo reacionário das comemorações, incluindo a semi-endeusamento do antigo Imperador Dom Pedro I, tem um precedente histórico sombrio – as comemorações do aniversário de 150 anos da secessão de Portugal, em 1972.
Naquele ano, o Brasil vivia sob uma ditadura militar sangunária, que havia sido inaugurada em 1964 com um golpe de Estado apoiado pelo imperialismo dos EUA. A ditadura buscava a aniquilação da guerrilha rural e a completa supressão da oposição da classe trabalhadora. Nos quatro anos seguintes, o regime brasileiro colaboraria na derrubada de governos nacionalistas-burgueses em todo o continente, participando diretamente de golpes militares no Chile, Uruguai e Argentina que fizeram mais de 70.000 vítimas.
Nesses “anos de chumbo”, como ficaram conhecidos, os militares brasileiros escolheram trazer as cinzas de Dom Pedro I de Portugal para exaltá-lo como o suposto líder visionário do estabelecimento de uma futura superpotência no quinto maior país do mundo.
O objetivo do novo culto monárquico era ocultar e enterrar qualquer legado democrático e igualitário do movimento independentista, que em muitas regiões do país foi inspirado pela Revolução Americana. Para os militares, o Brasil deveria celebrar as fantasias não realizadas de estabelecimento de uma “grande potência” de sua burguesia compradora, que não tinha nada a oferecer aos trabalhadores e aos pobres. As “realizações” a serem aclamadas foram a manutenção de um regime virtualmente absolutista, acompanhado de uma nobreza não-hereditária, catolicismo estatal e uma ligação consanguínea direta com a nobreza europeia, juntamente com a supressão de qualquer questionamento da exploração selvagem de 1,5 milhões de escravos de origem africana, que constituíam um quarto da população do país.
Este regime foi fundado, na prática, como continuidade da estrutura estabelecida pelo pai de Dom Pedro I, o rei português Dom João VI, na década anterior, depois que a coroa portuguesa fugiu da invasão napoleônica. Juntamente com 8.000 membros da corte, a coroa desembarcou no Rio de Janeiro em 1808, elevando-o a capital portuguesa. A transferência da capital implicou a abolição imediata de todas as restrições coloniais ao comércio e manufatura impostas ao Brasil. Mais tarde, levou à declaração de um Reino Unido de Portugal e Brasil em 1815. Quando Dom João VI decidiu transferir a corte de volta para Lisboa em 1821, anos após a derrota de Napoleão, seu filho Pedro foi designado como o Príncipe Regente do Brasil.
A forma final da declaração de independência em 1822 foi uma resposta às tentativas em Portugal de restaurar o status colonial do Brasil, e resultou na manutenção no país de grande parte da estrutura do antigo “Reino Unido” – acima de tudo o domínio da Casa de Bragança. Naquele contexto, Dom Pedro I decidiu pela secessão e sua própria ascensão ao trono a fim de evitar a possível abolição da monarquia como um todo.
O governo de Dom Pedro I foi identificado principalmente com o fechamento, em 1823, de uma Assembleia Constituinte liberal que estava elaborando um plano para uma monarquia constitucional. Em vez disso, o imperador elaborou uma nova constituição assegurando a si mesmo o “poder moderador” para revogar qualquer decisão dos poderes legislativo e judiciário.
O regime que Dom Pedro I logrou suprimir tentativas de quase todas as províncias brasileiras de declarar repúblicas abolicionistas independentes entre 1824 e 1844. Tal sucesso se manteve mesmo depois de o próprio Dom Pedro I abdicar a favor de seu filho de apenas cinco anos em 1831, a fim de recuperar o trono português reivindicado por seu irmão.
As celebrações de 1972 em homenagem ao imperador D. Pedro I marcaram o ocaso de um período que sucedeu a derrubada pelos militares do segundo e último imperador do Brasil, D. Pedro II, em 1889, sucedida pelo seu envio ao exílio e pela abolição das tradições monarquistas. Em seu lugar, sinalizando promessas de reforma e igualdade social, os militares reconheceram como herói nacional do Brasil o mártir republicano conhecido como “Tiradentes”, um representante da classe média baixa da colônia em crescente urbanização, que foi o único punido por uma tentativa precoce de secessão e declaração de uma república, a Inconfidência Mineira de 1789. Como explicam os livros de história brasileira, Tiradentes foi enforcado e seu corpo esquartejado e exposto na estrada que ligava a capital colonial, o Rio de Janeiro, ao centro rebelde de Vila Rica, a fim de deter novas rebeliões.
A simpatia histórica evocada por Tiradentes foi amplificada pelo fato de que mais de uma dezena de outros líderes rebeldes, sendo nobres ou membros do exército ou da Igreja, tiveram suas sentenças comutadas, com Tiradentes assumindo total responsabilidade pela rebelião.
Em 7 de setembro de 2022, o Brasil marcou seu aniversário de 200 anos sob um ataque sem precedentes ao nível de vida dos trabalhadores e empobrecimento, mortes e incapacitção em massa, causadas de forma desnecessária por uma pandemia fora de controle. A autodenominada oposição política “antifascista” a Bolsonaro manteve-se totalmente alheia a essas contradições básicas. O PT temia acima de tudo qualquer questionamento da história oficial e do papel dos militares, assim como provocar os apoiadores civis ultra-direitistas de Bolsonaro, que o partido ainda pretende reabilitar em nome da “unidade nacional”.
A violenta guinada à direita direita dentro do que passa por “esquerda” no Brasil foi revelada em uma entrevista publicada pelo porta-voz não-oficial do PT, o Brasil 24/7, com um dos principais apoiadores pseudoesquerdistas do partido, o presidente do Partido da Causa Operária (PCO), Rui Costa Pimenta. Pimenta foi convocado para prover um verniz “nacionalista de esquerda” à vergonhosa capitulação do PT frente às manifestações fascistoides de Bolsonaro, através da elevando o perfil de Pedro I e do próprio Dia da Independência. Pimenta proclamou o dia 7 de setembro como uma “a data fundamental do Brasil”, acrescentando que “Dom Pedro deve ser tratado como herói brasileiro. Era admirador da revolução francesa, soldado e líder militar. Ele e a princesa Leopoldina tinham uma profunda união pela libertação do Brasil”. Ele concluiu: “Como nação independente, o Brasil conquistou um nível de desenvolvimento muito superior ao dos países atrasados”.
Esta narrativa é evidentemente falsa. O Brasil viu sua renda per capita cair drasticamente em relação à dos Estados Unidos durante o período monárquico, e compartilhava de todas as fraquezas das repúblicas fragmentadas de língua espanhola que o rodeavam. O país logo se tornou presa dos banqueiros britânicos e mais tarde do imperialismo americano. Mas, acima de tudo, permanece até hoje um dos países mais socialmente desiguais do planeta – se não o mais – no qual uma pequena minoria pode acumular riquezas fabulosas e sonhar com “o jogo das grandes potências” ao lado das onipresentes favelas.
No entanto, por mais politicamente falidas e reacionárias que sejam as ideias de Pimenta, elas servem a interesses materiais. Como a própria observação obsequiosa do feriado pelo PT, elas encarnam a adaptação do partido às tentativas cada vez mais desesperadas da classe dominante brasileira de mobilizar o apoio da direita através da promessa de vantagens geopolíticas para uma pequena classe média alta – pela obtenção uma posição “muito superior” em comparação com outros países atrasados.
As últimas comemorações de 7 de setembro revelaram como Bolsonaro procura solidificar sua base social fascista através da hostilidade aberta à igualdade, exaltando “divisões naturais” entre os humanos, encarnadas em princípios monárquicos e autoritários, bem como em sua própria abordagem eugenista de “deixar o vírus se espalhar” na pandemia. A celebração do imperador Dom Pedro I como “poder moderador”, acima de legisladores e juízes, é particularmente importante e sinistra.
Há muito tempo os mais leais bolsonaristas defendem que o artigo 142 da Constituição do Brasil, que afirma que o Exército pode ser convocado por qualquer um dos três poderes, confere aos militares exatamente tal “poder moderador” no caso de um confronto entre diferentes setores do Estado. Em resposta à construção de um movimento fascista no Brasil, a oposição liderada pelo PT tem como único objetivo desorientar e desarmar os trabalhadores, apoiando ao mesmo tempo o fortalecimento do Estado e do nacionalismo.
A restauração do repugnante e reacionário culto monárquico nas comemorações do Dia da Independência deste ano no Brasil é o canto do cisne de qualquer pretensa aspiração de reforma social no interior da classe dominante do país, que se prepara para um confronto com uma classe trabalhadora relutante em aceitar o aprofundamento da pobreza e da miséria.
A fim de levar adiante sua luta por seus direitos sociais e democráticos prometidos e nunca realizados, os trabalhadores brasileiros devem rejeitar todas as formas de chauvinismo e nacionalismo, e seus promotores políticos no PT e em seu entorno.
A burguesia compradora atrasada do Brasil não conseguiu produzir uma revolução democrática burguesa significativa, como as de 1776 e 1861-1865 nos Estados Unidos, ou 1789 na França. A integração mundial da economia capitalista tornou impossível qualquer desenvolvimento deste tipo em uma base nacional.
A história do Brasil e seu atual impasse histórico são uma poderosa confirmação da Teoria da Revolução Permanente de Leon Trotsky, que estabelece que em países de desenvolvimento capitalista atrasado, somente a classe trabalhadora é capaz de liderar a luta pelos direitos democráticos e sociais básicos das massas oprimidas, tomando o poder em uma revolução socialista e estabelecendo a ditadura do proletariado como parte da luta pelo socialismo internacional.
Os trabalhadores precisam de uma estratégia socialista e internacionalista e, para isso, da construção de uma nova direção política revolucionária no interior da classe trabalhadora – uma seção brasileira do Comitê Internacional da Quarta Internacional.