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Estudo expõe espionagem da ditadura brasileira ao redor da América Latina

Tropas do Exército reprimem manifestação contra a ditadura militar. [Photo: Arquivo Nacional]

A recente publicação de um estudo sobre o arquivo secreto da ditadura militar brasileira de 1964-1985 jogou luz sobre como esse regime de terror fascista articulou uma rede contrarrevolucionária pela América Latina subordinada ao imperialismo dos Estados Unidos.

O estudo liderado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de São Paulo (USP) realizou a primeira análise sistemática dos 8 mil documentos que compõem o arquivo do Centro de Informações do Exterior (CIEX), “a agência clandestina de inteligência externa do regime [militar] encarregada de vigiar os opositores em todo o mundo entre 1966 e 1986”.

Um esforço de mais de um ano, que contou com a colaboração de mais de 20 pesquisadores e estudantes deu origem a um banco de dados batizado de Latin American Transnational Surveillance Dataset (Base de Dados da Vigilância Transnacional Latino-Americana). Ele confirmou que mais de 17 mil indivíduos estiveram sob vigilância do Itamaraty ao longo dos 20 anos de atuação do CIEX. Somente 30% deles eram cidadãos brasileiros.

Por meio de métodos clandestinos de espionagem e da colaboração com aparatos repressivos de regimes locais, a ditadura brasileira utilizou suas embaixadas e consulados ao redor do mundo como centros de perseguição política à oposição. Esse sistema de vigilância transnacional foi instrumental na prisão e execução extrajudicial, ou “desaparição”, de um número incalculável de cidadãos brasileiros e de outros países.

Uma das importantes conclusões do estudo é que as operações do CIEX “concentraram-se sequencialmente sobre a atividade oposicionista no Uruguai (1966-1970), no Chile (1970-1973), na Argentina (1973-1975) e em Portugal (1976)”. Em outras palavras, suas ações se concentraram em países sob regimes nominalmente democráticos que serviram, em diferentes momentos, como polos de agrupamento dos exilados políticos brasileiros. Participaram dessas operações criminosas não somente os diplomatas e funcionários consulares brasileiros, mas também as forças policiais e militares locais com as quais mantinham vínculos extraoficiais.

Refletindo sobre o significado dos seus achados, os pesquisadores afirmam:

A constatação de que a Vigilância Transnacional teve como alvo uma proporção menor de cidadãos nacionais em comparação com os não nacionais tem sérias implicações teóricas. Por um lado, ela desafia as noções convencionais de quem conta como vítima da repressão estatal transnacional, destacando o grau em que não-cidadãos também podem ser alvos do braço extraterritorial de autocracias estrangeiras. Por outro lado, ela nos leva a reavaliar o impacto da repressão estatal autocrática contra a dissidência nas relações internacionais em geral, inclusive como a violência política transnacional pode afetar as liberdades civis em um mundo interconectado.

Por mais reveladores que sejam esses documentos em si mesmos, eles são provavelmente apenas uma parte limitada do arquivo secreto da diplomacia brasileira durante a ditadura. Esses arquivos foram preservados nos porões do Itamaraty apesar de uma indicação do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) no período final do regime para que fossem destruídos.

A própria existência do CIEX permaneceu em segredo até 2007, mais de duas décadas após o fim da ditadura, quando revelada por uma série de reportagens no Correio Braziliense, que teve acesso em primeira-mão aos arquivos, transferidos para o Arquivo Nacional.

“O conhecimento desse capítulo escondido da ditadura recoloca a diplomacia junto aos militares no banco dos réus no julgamento da História”, escreveu Claudio Dantas Sequeira, o autor da série de reportagens premiada.

A fundação do CIEX em 1966, atestaram ex-membros do departamento ao Correio, foi instaurada por uma “portaria ultra-secreta” que permanece “inacessível, confinada num imenso cofre localizado no subsolo do Itamaraty”.

Manoel Pio Corrêa, diplomata brasileiro e destacado agente da contrarrevolução na América Latina. [Photo: Arquivo Nacional]

O criador do CIEX foi o diplomata Manoel Pio Corrêa, que chefiara o Departamento Político do Itamaraty de 1959 até o fim do governo de Juscelino Kubitschek em 1961. Como descreve Sequeira, “Na pele de executor da política externa do Brasil,” posto ao qual foi elevado pelo regime militar, “ele se lançou em uma cruzada contra o comunismo, convicto de que se tratava de um mal a ser extirpado da sociedade. Sua eficiência lhe rendeu admiração e respeito na caserna, e a alcunha de ‘troglodita reacionário’ por parte dos asilados políticos brasileiros”.

Um fato que contém lições políticas cruciais é que essa agência de perseguição transnacional começou a ser articulada por Corrêa bem antes do golpe de 1964.

Em um livro de memórias, ele afirma ter recebido “um precioso presente” de sua predecessora no cargo, Odette de Carvalho e Souza, ao assumir o Departamento Político do Itamaraty: um arquivo com as fichas de cidadãos brasileiros e estrangeiros envolvidos em atividades “subversivas” durante as décadas anteriores. “Quando deixei o departamento no fim do governo Kubitschek, desconfiando, com toda razão como se viu mais tarde, do que viria sob o governo seguinte”, Corrêa escreveu, “deixei esse arquivo, consideravelmente aumentado, confiado a um oficial amigo, que fazia ligação do então Serviço de Informação e Contra-Informação (SFICI) com o Itamaraty”.

Atuando no meio tempo como embaixador brasileiro no México, após a instauração do regime militar, Corrêa foi enviado à embaixada do Uruguai, país onde o presidente deposto, João Goulart do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), vivia exilado. Trabalhando para neutralizar articulações políticas contra o regime do golpe no Brasil, Corrêa forjou uma extensa rede de contatos que incluía políticos, militares, delegados de polícia e juízes no país vizinho nominalmente democrático. “[E]ncontrei nas polícias departamentais excelentes fontes de informação e ocasionalmente algum tipo de cooperação ativa, extra-oficial”, ele escreveu.

Nomeado Secretário-Geral das Relações Exteriores do Brasil na sequência, posto que ocupou ao longo do regime militar, Corrêa universalizou tais métodos criminosos na criação do CIEX.

A atuação consistente de Corrêa como um agente da contrarrevolução na América Latina, seja à frente do CIEX como em sua longa carreira anterior, está profundamente associada às operações do imperialismo americano, que patrocinou o golpe militar de 1964 no Brasil.

Em suas memórias publicadas em 1976, o agente da CIA Philip Agee, que estava em Montevidéu em 1964, atestou que a decisão de enviar Pio Corrêa ao Uruguai foi tomada pela base da CIA no Rio de Janeiro que estava “decidida a elaborar operações contra os exilados [brasileiros]”. A CIA o considerava “o homem indicado” uma vez que “demonstrou muita eficiência nas tarefas operacionais para a base [da CIA] da Cidade do México”, durante sua atuação como embaixador.

É um fato bem estabelecido que a ditadura militar brasileira atuou em coordenação com Washington para derrubar regimes democráticos e afogar em sangue a onda de levantes que varreram a América Latina nos anos 1960 e 1970.

Os arquivos do CIEX ajudam a esclarecer como os militares fascistas latino-americanos, promovidos pela CIA, forjaram suas redes secretas de atuação conjunta, preparando golpes de Estado e perseguindo, torturando e assassinando centenas de milhares de opositores políticos.

As operações promovidas pelo CIEX desde 1966 preconizaram e culminaram na Operação Condor, estabelecida em 1975-76. A Operação Condor formalizou a colaboração das agências de repressão das ditaduras do Uruguai, Paraguai, Brasil, Chile e Bolívia. Sob inspiração, financiamento e treinamento da CIA, estendeu suas garras também sobre Peru, Equador, Venezuela, Colômbia e, a partir do fim dos anos 1970, com cada vez mais intensidade sobre países da América Central.

Esses esforços criminosos resultaram na transformação do continente em um “labirinto do horror”, nas palavras da autora argentina Stella Calloni. “Um exilado político podia ser sequestrado, tomado como refém e levado para o outro lado da fronteira, torturado e desaparecido, sem qualquer autorização judicial”, escreveu Calloni em “Operação Condor: Pacto criminoso”.

Os segredos persistentes e a relevância renovada dos crimes da ditadura

Passaram-se quase vinte anos desde que Sequeira reportou que a ordem oficial de criação do CIEX permanecia trancada num acervo secreto nos porões do Itamaraty. Na época, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciava seu segundo mandato.

Quando diretamente confrontado, em 2007, pelo repórter do Correio Braziliense, o Ministério das Relações Exteriores, comandado por Celso Amorim, declarou não ter “comentários a fazer sobre aspectos de um passado que felizmente deixou de existir”.

Essa resposta, vinda de um governo que proclamava ser o representante da “esquerda” no Brasil, gerou uma onda de indignação contra Lula e o PT.

A organização Tortura Nunca Mais, composta por vítimas da perseguição política no regime militar, publicou uma carta de repúdio contra o governo, declarando: “Causa repulsa e mesmo revolta que estes arquivos e muitos outros estejam fechados aos familiares atingidos pelo terrorismo de Estado e ao público geral que tem direito de conhecer sua história”. Belisário dos Santos, um destacado advogado de presos políticos durante a ditadura, afirmou: “O nosso chanceler Celso Amorim deveria ficar atônito com isso, mas reagiu como se já soubesse”.

Mesmo com o PT tendo passado outros 12 anos no poder e Lula estando hoje em seu terceiro mandato, o Estado brasileiro jamais reconheceu a existência do CIEX e documentos como a portaria de sua criação permanecem trancados.

Em 24 de fevereiro deste ano, O Globo reportou ter questionado o atual governo do PT “sobre o motivo pelo qual nunca reconheceu as atividades de espionagem” e que o “Itamaraty deu uma resposta evasiva”. O jornal afirmou ter também perguntado “quantos servidores do MRE integraram o Ciex, sua atribuição formal no governo, os países onde atuou e solicitamos a íntegra da portaria responsável pela sua criação, até hoje não conhecida”. O governo não deu resposta.

O Globo entrevistou Matias Spektor, pesquisador da FGV que liderou o recente estudo sobre o arquivo do CIEX, que explicou que um dos motivos para o Estado brasileiro manter tais segredos é o fato de que “muitos dos funcionários que trabalharam na máquina de repressão continuaram suas carreiras como diplomatas no Itamaraty depois de terminada a ditadura”.

A relevância atual desse “passado” só parcialmente revelado é imensa.

Por toda a América Latina, os herdeiros militares e políticos dos regimes de terror dos anos 1960-1970 foram trazidos mais uma vez ao centro dos desenvolvimentos políticos.

No Brasil, dois anos atrás, o ex-presidente Jair Bolsonaro e a camarilha fascista que permanece no comando das Forças Armadas tentaram dar um golpe de Estado para reestabelecer um regime ditatorial militar no país. As evidências sobre essa conspiração fascista, que culminou no ataque às sedes do governo em Brasília em 8 de janeiro de 2023, expõem a absoluta perfídia do PT. Ele ainda atribui os crimes do regime militar e sua diplomacia a um “passado que felizmente deixou de existir”.

Polícia fica de lado enquanto os fascistas invadem os edifícios do governo brasileiro [Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil] [Photo: Marcelo Camargo/Agência Brasil ]

O PT e seus satélites da pseudoesquerda jamais levantaram a questão, por exemplo, de que o coronel Alexandre Castilho Bittencourt da Silva – um dos 23 militares acusados de participar da conspiração golpista – residia em Santiago do Chile no final de 2022, quando participou da redação da “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro”, considerado uma peça-chave da tentativa de golpe.

É sabido que Bittencourt comandou o 6° Batalhão de Polícia do Exército até fevereiro de 2022, e que deixou o cargo para cursar uma pós-graduação em Condução de Políticas Estratégicas de Defesa na Academia Nacional de Estudos Políticos e Estratégicos (ANEPE). Quais relações políticas ele estabeleceu durante esse período crítico?

A existência de tais relações entre os militares brasileiros e chilenos possui as mais graves implicações. Seus laços históricos criminosos remontam à conspiração conjunta do golpe que derrubou o governo de Salvador Allende e massacrou dezenas de milhares de trabalhadores chilenos. Eles levaram, em seguida, à colaboração na Operação Condor dirigida pelo ditador sanguinário General Augusto Pinochet.

Paralelamente à renovação dos laços entre militares brasileiros e chilenos, as relações extraconstitucionais entre o imperialismo americano e os militares latino-americanos vêm sendo aceleradamente reavivadas no contexto da guinada de Washington para contra-atacar a influência crescente da China e Rússia na região.

A ofensiva de Washington para reestabelecer violentamente sua hegemonia sobre o Hemisfério Ocidental assumiu um ritmo ainda mais febril sob o atual governo de Donald Trump. Esses esforços vinculam-se diretamente à sanha de Trump e seu gabinete de oligarcas fascistas para impor uma ditadura nos Estados Unidos, tomando inspiração direta na história sangrenta da América Latina.

Trump anunciou entusiasticamente seu objetivo de deportar cidadãos americanos para prisões em países como El Salvador, onde o governo de Nayib Bukele ergueu um sistema de encarceramento em massa da população, sem devido julgamento e sob condições de tortura e das mais diversas violações dos direitos humanos.

Através de suas ligações com forças políticas fascistas como Bukele, Bolsonaro e Javier Milei na Argentina, Trump ambiciona a reconstrução do “labirinto do horror” dos anos Condor, desta vez, profundamente integrado à perseguição política da classe trabalhadora e da juventude dentro dos próprios Estados Unidos.

Esses desenvolvimentos acentuam a necessidade urgente de que os trabalhadores e jovens na América Latina e nos Estados Unidos, que entram em um novo período de lutas massivas, se unifiquem através das fronteiras e construam uma direção revolucionária provida de uma estratégia internacionalista para a derrubada do sistema capitalista apodrecido.