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Publicado originalmente em 21 de agosto de 2020
Após o racha com a minoria do Partido Socialista dos Trabalhadores, Trotsky pôde voltar sua atenção para a elaboração de um Manifesto para a Conferência de Emergência da Quarta Internacional, que havia sido convocada para responder à súbita expansão da guerra na Europa Ocidental. A rápida conquista da Polônia pela Alemanha nazista no outono de 1939 dera lugar a uma prolongada trégua no conflito militar, a chamada “Sitzkrieg”. Porém, em abril de 1940, Hitler começava uma nova etapa na guerra. A Wehrmacht se deslocou para o oeste, primeiro conquistando a Noruega e a Dinamarca e, em maio, invadindo a Holanda, a Bélgica e a França.
O Manifesto de Trotsky começou com um apelo agitativo a todas as vítimas da opressão capitalista-imperialista.
A Quarta Internacional não se volta para os governos que têm arrastado os povos para a carnificina, para os políticos burgueses que têm a responsabilidade por esses governos, nem para a burocracia trabalhista que apoia a burguesia em guerra. A Quarta Internacional se volta para os homens e mulheres trabalhadores, os soldados e os marinheiros, os camponeses arruinados e os povos coloniais escravizados. A Quarta Internacional não tem nenhum vínculo com os opressores, os exploradores, os imperialistas. Ela é o partido mundial dos trabalhadores, dos oprimidos e dos explorados. Este manifesto é dirigido a eles. [1]
O Manifesto rejeitou todas as explicações oficiais para o início da guerra. “Ao contrário das fábulas oficiais destinadas a drogar o povo”, escreveu Trotsky, “a principal causa da guerra, e de todos os outros males sociais – o desemprego, o alto custo de vida, o fascismo, a opressão colonial –, é a propriedade privada dos meios de produção assim como o Estado burguês que repousa sobre essa base”. [2] Como na Primeira Guerra Mundial, por trás da eclosão do conflito militar estava a rivalidade entre as potências imperialistas.
Até então, os principais protagonistas neste conflito global eram o Reino Unido, a França, a Alemanha e a Itália, com o Japão buscando seus interesses na Ásia. Mas, ao fundo, estavam os Estados Unidos, que, segundo Trotsky, “intervirão no grande conflito para manter seu domínio mundial. A ordem e o tempo da luta entre o capitalismo estadunidense e seus inimigos ainda não são conhecidos – talvez nem mesmo por Washington. A guerra com o Japão seria uma luta pela ‘sala de estar’ no Oceano Pacífico. A guerra no Atlântico, mesmo que dirigida imediatamente contra a Alemanha, seria uma luta pela herança do Reino Unido.” [3]
Trotsky rechaçou as alegações de que as elites dominantes estavam em guerra pela “Defesa da ‘Pátria’”. A burguesia, escreveu ele, “nunca defende a pátria em nome da pátria. Eles defendem a propriedade privada, os privilégios, os lucros... O patriotismo oficial é uma máscara para os interesses exploradores. Os trabalhadores que têm consciência de classe colocam essa máscara de lado, com desprezo.” [4] Quanto à pretensiosa invocação aos ideais democráticos, estes não foram menos fraudulentos do que as declarações patrióticas. Todas as democracias, com o Reino Unido em primeiro lugar, ajudaram a levar Hitler ao poder. E todas elas obtiveram uma parte significativa de sua riqueza pela exploração brutal dos povos coloniais.
O regime de Hitler nada mais era do que “a destilação quimicamente pura da cultura do imperialismo”. A alegação hipócrita de que as potências democráticas estavam combatendo o fascismo era uma flagrante distorção política da história e da realidade.
Os governos democráticos, que em sua época saudaram Hitler como um combatente contra o bolchevismo, agora fazem dele uma espécie de Satanás inesperadamente solto das profundezas do inferno, que viola a santidade dos tratados, fronteiras, normas e regulamentos. Se não fosse por Hitler, o mundo capitalista floresceria como um jardim. Que mentira miserável! Este epiléptico alemão com uma máquina de calcular no crânio e poder ilimitado em suas mãos não caiu do céu ou saiu do inferno: ele não é nada mais que a personificação de todas as forças destrutivas do imperialismo. [5]
Trotsky então se voltou à análise do papel desempenhado pelo regime stalinista em sua cumplicidade pelo início da guerra.
A aliança de Stalin com Hitler, que levantou a cortina sobre a guerra mundial e levou diretamente à escravidão do povo polonês, resultou da fraqueza da URSS e do pânico do Kremlin diante da Alemanha. A responsabilidade por essa fraqueza recai sobre o próprio Kremlin; sua política interna, que abriu um abismo entre a casta dominante e o povo; sua política externa, que sacrificou os interesses da revolução mundial em detrimento dos interesses da camarilha stalinista. [6]
Apesar dos crimes de Stalin, uma invasão da União Soviética pelos nazistas – que Trotsky acreditava ser inevitável – colocaria em questão não apenas a sobrevivência da ditadura do Kremlin, mas a da URSS. As conquistas da revolução, por mais distorcidas e desfiguradas que tivessem sido pelo stalinismo, não poderiam ser entregues aos exércitos invasores do imperialismo. “Ao mesmo tempo que empreende uma luta incansável contra a oligarquia de Moscou”, proclamou Trotsky, “a Quarta Internacional rejeita definitivamente qualquer política que possa ajudar o imperialismo contra a URSS”. Ele continuou:
A defesa da URSS coincide, em princípio, com a preparação da revolução proletária mundial. Rejeitamos categoricamente a teoria do socialismo em um só país, essa criação particular do ignorante e reacionário stalinismo. Somente a revolução mundial pode salvar a URSS ao socialismo. Mas a revolução mundial traz consigo a inevitável destruição da oligarquia do Kremlin. [7]
A análise de Trotsky sobre a guerra abrangia os desdobramentos nas propriedades coloniais, as quais ele estava convencido de que se tornariam um cenário massivo de lutas revolucionárias globais. “Toda a guerra atual”, escreveu ele, “é uma guerra contra as colônias. Elas são caçadas por alguns; mantidas por outros que se recusam a desistir delas. Nenhum dos lados tem a menor intenção de libertá-las voluntariamente. Os centros das metrópoles em declínio são impelidos a drenar o máximo possível das colônias e a dar-lhes o mínimo possível em troca. Somente a luta revolucionária direta e aberta dos povos escravizados pode abrir o caminho para sua emancipação.” [8]
Trotsky fez um levantamento das condições econômicas e políticas na China, Índia e América Latina. Em cada situação, levando em consideração as condições específicas, a vitória da luta contra as potências imperialistas dependia do estabelecimento da independência política da classe trabalhadora em relação às elites dominantes nacionais corruptas e comprometidas. A teoria da revolução permanente – que orientou a classe operária russa ao poder em 1917 – manteve plena validade para a classe operária em todos os países oprimidos pelo imperialismo. A derrubada do domínio imperialista estava intrinsecamente ligada e inseparável da luta pelo poder dos trabalhadores e pelo socialismo. Além disso, como o exemplo da Rússia havia provado, não havia uma ordem especial que determinasse a priori quando um ou outro país teria condições que permitissem à classe operária conquistar o poder. Trotsky explicou:
A perspectiva da revolução permanente em nenhuma hipótese significa que os países atrasados devem esperar o sinal dos avançados, ou que os povos coloniais devem esperar pacientemente pelo proletariado dos centros das metrópoles para libertá-los. A ajuda vem para aquele que ajuda a si mesmo. Os trabalhadores devem levar adiante a luta revolucionária em todos os países, coloniais ou imperialistas, onde as condições favoráveis estiverem estabelecidas, e através disso dar o exemplo aos trabalhadores de outros países. Somente iniciativa e atividade, determinação e ousadia podem realmente concretizar a palavra de ordem “Trabalhadores do mundo, uni-vos!” [9]
Nas partes finais do Manifesto, Trotsky voltou às questões teóricas e políticas centrais que ele havia levantado no início da luta contra a minoria pequeno-burguesa e que o preocupariam nas últimas semanas de sua vida. A eclosão da Segunda Guerra Mundial fora preparada pelas traições de todas as organizações de massa da classe trabalhadora, fossem elas socialdemocratas, stalinistas, anarquistas ou alguma outra variedade de reformismo. Como, então, a classe trabalhadora encontraria o caminho ao poder?
Trotsky examinou as condições essenciais para a conquista do poder pela classe trabalhadora: uma crise que cria um impasse político que desorienta a classe dominante; uma insatisfação intensa com as condições existentes entre grandes setores da classe média que deixam de apoiar os grandes capitalistas; a convicção dentro da classe trabalhadora de que a situação é intolerável e uma vontade de agir radicalmente; e, finalmente, um programa e uma liderança decisiva dentro dos setores avançados da classe trabalhadora. Mas cada uma destas condições pode se desenvolver em um ritmo diferente. Enquanto a burguesia se encontra em um impasse político e a classe média procura alternativas às condições existentes, a classe trabalhadora – sob a influência de derrotas passadas – pode se mostrar relutante em iniciar lutas decisivas. Trotsky reconheceu que as traições nos anos que antecederam o início da guerra haviam criado um clima de desânimo entre os trabalhadores. “Não se deve, entretanto, superestimar a estabilidade ou a durabilidade de tais sentimentos”, aconselhou Trotsky. “Os eventos os criaram; os eventos os afastarão.” [10]
Por fim, levando em consideração a complexa interação dos elementos contraditórios de uma crise social fundamental, o destino da revolução depende da resolução do problema da liderança. Ao enfrentar este problema, Trotsky colocou hipoteticamente duas questões: “Não será a revolução traída também desta vez, já que existem duas Internacionais [a Segunda Internacional socialdemocrata e a Internacional Comunista stalinista, também conhecida como Comintern] a serviço do imperialismo, enquanto os elementos genuinamente revolucionários constituem uma minoria minúscula? Em outras palavras: será que vamos conseguir preparar a tempo um partido capaz de liderar a revolução proletária?” [11]
Em seu ensaio “A URSS e a guerra”, escrito oito meses antes, em setembro de 1939, Trotsky havia indicado que o resultado da Segunda Guerra Mundial poderia ser decisivo para determinar a viabilidade da perspectiva da revolução socialista. “Os resultados deste teste”, escreveu ele, “terão sem dúvida um significado decisivo para nossa avaliação da época moderna como a época da revolução proletária”. [12] Mas esta afirmação tinha o caráter de uma obiter dictum, uma observação incidental destinada, legitimamente, a enfatizar a gravidade da situação mundial e os perigos que ela representava para a classe trabalhadora. Não se destinava a ser interpretada como um cronograma histórico inalterável. Em um documento posterior, escrito em abril de 1940, Trotsky levantou um ponto crucial sobre a metodologia da análise marxista:
Todo prognóstico histórico é sempre condicional, e, quanto mais concreto o prognóstico, mais condicional ele é. Um prognóstico não é uma nota promissória a ser descontada em uma determinada data. O prognóstico apenas delineia as tendências definidas do desenvolvimento. Mas, junto com estas tendências, opera uma ordem diferente de forças e tendências, que em um determinado momento começam a predominar. Todos aqueles que buscam previsões exatas de eventos concretos devem consultar os astrólogos. O prognóstico marxista apenas auxilia a orientação. [13]
Está claro que, em maio, Trotsky procurava orientar a Quarta Internacional com base em uma perspectiva cuja análise se estendia além da guerra e de seu resultado imediato. A guerra não era apenas o auge da crise do período pós-Primeira Guerra Mundial; era também o início de uma nova etapa na crise do sistema capitalista e da revolução mundial. Os quadros da Quarta Internacional teriam que se preparar para um período prolongado de luta. “Naturalmente”, reconheceu ele, “este ou aquele levante pode terminar e certamente terminará em derrota, devido à imaturidade da liderança revolucionária. Mas não se trata de um único levante. É uma questão de toda uma época revolucionária.”
Que conclusão se tirou desta avaliação da guerra como um ponto de inflexão na história mundial?
O mundo capitalista não tem saída, a menos que se considere uma prolongada agonia mortal. É preciso se preparar para longos anos, se não décadas, de guerras, levantes, breves períodos de tréguas, novas guerras e novos levantes. Um jovem partido revolucionário deve se basear nesta perspectiva. A história lhe proporcionará oportunidades e possibilidades suficientes para testar a si mesmo, para acumular experiência e para amadurecer. Quanto mais rápido as fileiras da vanguarda se unirem, mais a época de convulsões sangrentas se encurtará, menos destruição nosso planeta sofrerá. Mas, de qualquer forma, o grande problema histórico não será resolvido até que um partido revolucionário esteja à frente do proletariado. A questão dos tempos e dos intervalos de tempo é de enorme importância; mas não altera nem a perspectiva histórica geral nem a direção de nossa política. A conclusão é simples: é necessário continuar o trabalho de educação e organização da vanguarda do proletariado com dez vezes mais energia. É exatamente nisto que reside a tarefa da Quarta Internacional. [14]
Continua
[1] Writings of Leon Trotsky 1939-40, p. 183
[2] Ibid, p. 185
[3] Ibid, p. 188
[4] Ibid, p. 191
[5] Ibid, pp. 193-94
[6] Ibid, p. 197
[7] Ibid, pp. 199-200
[8] Ibid, p. 202
[9] Ibid, p. 206
[10] Ibid, p. 217
[11] Ibid
[12] In Defence of Marxism, p. 17
[13] Ibid, p. 219
[14] Writings of Leon Trotsky 1939-40, p. 218