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A marcha pela ciência no Brasil e o papel do nacionalismo e dos militares

Em solidariedade à Marcha pela Ciência dos EUA, dezenas de cidades brasileiras assistiram a comícios e manifestações em 22 de abril. A maior manifestação foi realizada em São Paulo, onde cerca de 500 cientistas, estudantes e apoiadores enfrentaram uma chuva atípica de outono para ouvir os discursos sobre algumas das questões mais desafiadoras enfrentadas pelas ciências das doenças tropicais no país e figuras destacadas como a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a bioquímica Helena Nader, e o membro do IPCC Paulo Artaxo. O presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o físico Luiz Davidovich, discursou na manifestação no Rio de Janeiro.

A genuína preocupação com as questões internacionais e democráticas enfrentada pelo empreendimento científico e a solidariedade com o movimento mundial contra o ataque de extrema-direita ao pensamento científico que animou o movimento internacional foi expressa por muitos oradores, assim como pelos manifestantes entrevistados pelo WSWS. No entanto, as manifestações brasileiras, e a de São Paulo em particular, foram realizadas sob a sombra dos interesses nacionais, econômicos e militares, que tem se manifestado durante quase um século sobre a comunidade científica do país.

A ciência brasileira está enfrentando uma crise profunda, com os cortes orçamentários iniciados nos últimos anos do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2014 culminando este ano na redução de 50% do orçamento do Ministério da Ciência sob o governo do ex-vice-presidente Michel Temer. Enquanto isso, o Ministério da Ciência foi fundido com o das Comunicações, que é responsável, entre outras coisas, por muitas atividades relacionadas aos transportes.

Nesse contexto, artigos em jornais de pesquisadores nacionalmente conhecidos antes da marcha apelaram explicitamente para a perspectiva nacionalista que dominou as políticas do PT em relação à ciência.

A convocação inicial de Nader de 30 de março em apoio ao movimento internacional foi consistente com os objetivos de uma defesa internacional e democrática da colaboração mundial na ciência. Depois, no entanto, um artigo de Nader e Davidovich de 12 de abril na Folha de S. Paulo, procurando esclarecer a extensão e a relevância dos cortes no orçamento para as atividades científicas, escolheu exemplos como o impacto na competitividade internacional da Embraer, cujos aviões de ataque leve foram fornecidos ao regime fantoche dos EUA no Afeganistão, e o papel da “pesquisa nacional” para levar a gigante petrolífera estatal Petrobras à liderança mundial na extração de petróleo em alto mar.

Segundo o artigo “Ciência brasileira, últimos suspiros?”, o orçamento para 2017 representa a metade do de 2005, considerando a inflação, apesar de o número de estudantes de graduação e de teses de doutorado publicadas ter duplicado nesse período.

O chamado para a marcha de São Paulo, realizado pela Associação de Pós-Graduandos da principal universidade do país, a Universidade de São Paulo (USP), entre outras organizações, afirma que o segundo objetivo da marcha, após a defesa de maiores salários e mais empregos para os cientistas, é defender a ciência “em nome da soberania nacional”. O oitavo ponto do chamado faz a afirmação absurda de que “países como os Estados Unidos, os da Europa, China e Coréia do Sul fazem investimentos em ciência em tempos de crise para superá-los”. Tal afirmação contraria a realidade que levou as pessoas para as ruas do mundo inteiro.

Um completo silêncio sobre a ofensiva internacional de extrema direita só foi quebrado por alguns discursos, como o do ex-presidente do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, Hernan Chaimovich, que afirmou que “a ciência ... não só perturba a desigualdade social, mas faz as pessoas acreditarem na democracia”. Ele acrescentou: “Que esse começo, que é mundial, porque a ciência é mundial, seja uma forma de dizer ‘não’ ao argumento do poder”.

Na mesma linha, o biólogo Walter Neves, referindo-se ao crescimento dos grupos cristãos evangélicos nas assembleias legislativas estaduais e no Congresso Nacional, afirmou: “Podemos nos tornar o segundo maior país criacionista do mundo, depois dos Estados Unidos... Não tenho dúvidas de que em poucos anos eles tentarão proibir o ensino da evolução nas escolas”. Neves ganhou reconhecimento mundial como chefe do grupo que desde os anos 1980 estuda a Luzia, um fóssil humano que aponta para uma presença humana muito mais antiga na América do Sul do que se acreditava anteriormente.

A ausência de mais intervenções como a de Neves na manifestação foi digna de nota, uma vez que os professores brasileiros entraram em greve nos últimos anos em todo o país contra as “leis da mordaça” associadas ao movimento Escola sem Partido, que eram direcionadas aos discursos de esquerda e ao ensino de ciências.

Por outro lado, o biólogo Carlos Menck, ex-chefe de vários ramos brasileiros do projeto Genoma, atingiu o ponto mais baixo da marcha, opondo o nacionalismo com uma de suas formas mais virulentas no Brasil, o chauvinismo regional paulista, referindo-se às políticas da desacreditada aristocracia cafeeira paulista dos anos 1930 e afirmando que “São Paulo não é o estado mais rico do país por acaso, é por causa da ciência”.

Criticamente, a história da ciência brasileira está repleta de exemplos de interesses nacionalistas e militares paralisando a pesquisa de ponta e perseguindo os principais cientistas.

Um dos principais impulsos para o desenvolvimento de centros de pesquisa no país após a Segunda Guerra Mundial foi o desejo dos militares de explorar os depósitos de urânio do país a cerca de 300 km a nordeste do Rio de Janeiro, o quinto maior do mundo.

O desenvolvimento da tecnologia nuclear militar seria o principal impulso para o desenvolvimento da indústria energética e da física, da matemática e da engenharia – incluindo a aviação e a construção naval. A pesquisa deponto em física no país é até hoje desenvolvida em áreas militares, impondo restrições anticientíficas ao trabalho dos cientistas.

De acordo com os números oficiais divulgados em 2015 que foram reunidos no contexto das audiências do Congresso da Comissão Nacional da Verdade, sobre a repressão à dissidência durante a ditadura de 1964-1985 apoiada pelos EUA, a histeria nacionalista levou à demissão de pelo menos 471 importantes pesquisadores suspeitos de atividades socialistas e “antinacionais”. O caso mais notório foi o Massacre de Manguinhos, que aconteceu no principal centro de pesquisa e de controle de doenças do Brasil, o Instituto Oswaldo Cruz, envolvendo a violenta invasão e destruição de arquivos e material de pesquisa por soldados uniformizados e levando a um surto quase imediato da doença de Chagas, que há muito estava controlada na cidade do Rio de Janeiro.

O Brasil resistiu à assinatura do Tratado de Não-Proliferação Nuclear até 1998, e só então a pesquisa de bombas atômicas foi decisivamente desfinanciada.

O investimento científico sob o governo do PT estava, desde o início, dependente dos militares. Roberto Amaral, ministro da ciência no primeiro governo do PT, entrevistado pela BBC em 5 de janeiro de 2003 – seu quinto dia no cargo –, recusou-se a negar que a pesquisa seria dirigida ao desenvolvimento de uma bomba atômica e afirmou que o impulso para o desenvolvimento da ciência viria de um novo programa para desenvolver submarinos movidos a energia nuclear. Ele afirmou: “Quando você desenvolve um submarino, você desenvolve ao mesmo tempo física, matemática e engenharia. Eu tenho este objetivo estratégico.”

Mais tarde, mudanças na política de sigilo nacional sobre a pesquisa nuclear – supostamente civil – do Brasil levaram a uma disputa com as Nações Unidas e os Estados Unidos em 2004 sobre as inspeções da Agência Atômica Internacional, como foi amplamente divulgado pela imprensa na época.

O programa de submarinos nucleares – com o primeiro deles devendo ficar pronto no final da década – tornou-se finalmente uma realidade em 2008 a um custo de mais de um bilhão de dólares. Ele fazia parte de uma nova Estratégia Nacional de Defesa decretada pelo presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, que renovou o compromisso do governo com “o projeto nacional para as forças militares como meio de unir a nação acima das diferenças de classe social”.

Simultaneamente, a descoberta da chamada “Amazônia Azul” de jazidas de petróleo e gás em águas profundas levou a um boom nos investimentos da Petrobras em pesquisa em química e à abertura de universidades federais em regiões de refino de petróleo voltados para seu desenvolvimento.

Com o boom das commodities e a sempre crescente investigação da Operação Lava-Jato, inicialmente centrada em esquemas de suborno e propina na Petrobras, combinados para levar a empresa e indústrias associadas a uma paralisia virtual, o chefe do programa de submarinos nucleares, almirante da reserva Othon Pinheiro da Silva, foi preso sob a acusação de receber subornos da Odebrecht, a gigante da construção civil agora no centro do escândalo. O governo do PT havia concedido à Odebrecht o direito de construir os estaleiros para os submarinos no sul do Rio de Janeiro, e até mesmo criar uma filial da empresa, a Odebrecht Defesa e Tecnologia, para esse fim.

Ao contrário das reivindicações dos líderes das Marchas pela Ciência no Brasil, encarar a ciência através do prisma dos “interesses nacionais” ou mesmo da “soberania” é precisamente o que levou à atual crise da ciência no Brasil nos dias de hoje.

O evento em São Paulo confirmou claramente os pressupostos da declaração do WSWS de 20 de abril, “A ciência e o socialismo”. Para muitos desses importantes cientistas que falaram, assim como para os que participaram, a aplicação de um entendimento científico à história e à sociedade – o que significa necessariamente retomar um estudo sobre o marxismo – continua sendo a tarefa crítica.

A seguir, estamos publicando trechos das entrevistas realizadas por repórteres do WSWS em São Paulo, onde a declaração de 20 de abril foi também distribuída.

Questionado sobre a situação internacional que levou à convocação internacional para a marcha, João Steiner, professor de astrofísica da USP, disse: “Trump é um exemplo desse ataque obscurantista, mas não é o único. Ele vem no bojo dos movimentos criacionistas, contra as mudanças climáticas, que veio se avolumando e Trump é o desfecho dessa história.”

Sobre o impulso mundial à guerra relacionado aos ataques à ciência, ele disse: “Eu acho que uma nova guerra mundial não está descartada, certamente não. O discurso belicista de Trump é muito perigoso nesse sentido. Se você olhar a situação da Primeira Guerra Mundial, mais do que a Segunda, nós estamos nos aproximando da configuração da Primeira Guerra Mundial.”

Sua colega de USP, a professora de ciências atmosféricas Maria de Fátima, disse: “Eu considero uma prioridade manter os recursos para educação e para as ciências. Eu estou muito preocupada com a diminuição de recursos para o ministério do meio ambiente. Sempre existiram pessoas com pensamentos obscurantistas, mas, hoje, encontraram espaço para se manifestar, e existe um público para essas ideias também. Eu não sei se é porque há uma falta de informação, mas as pessoas acham que isso possa ser uma resposta às questões que elas possuem, do ponto de vista social, econômico.”

Paulo e Felipe, pesquisadores do IPT, também estavam preocupados com o clima reacionário contra o pensamento científico. Segundo Felipe, “existe um descaso do governo do Estado [de São Paulo] em relação aos institutos de pesquisa ... e uma pressão cada vez maior para se vender serviços tecnológicos”, que “vai enterrando cada vez mais o desenvolvimento de ciência e tecnologia do estado e do país. Não se valoriza o desenvolvimento da ciência porque é algo mais a longo prazo.”

Paulo criticou a subordinação da ciência ao lucro pelos governos do mundo inteiro, tanto de direita quanto nominalmente de “esquerda”: “Estamos vendo um apocalipse na ciência mundial e, em particular, na brasileira. ... O mercado financeiro, infelizmente, tem uma força muito grande no mundo hoje, ... é muito imediatista, se está pagando juros, está tudo certo. Como consequência da financeirização, tem essa desgraça [que são os cortes] ... Qual é diferença entre um republicano e um democrata nos EUA? Na França, Holande foi uma cópia de Sarkozy. Está todo mundo de saco cheio desses caras, porque o mercado financeiro está mandando em tudo, assim como manda no Brasil. Lá, nesses países, vota-se em qualquer coisa para mudar isso. Nos EUA, tem uma coisa que é o empobrecimento da classe média, na França, a mesma coisa. ... O Obama bombardeou 7 países... qual é a diferença entre ele e o Bush? Os extremistas religiosos estão crescendo no mundo inteiro, porque não estão resolvendo os problemas das pessoas em geral. A esquerda abriu mão de discutir economia, e se resumiu ao que inglês é chamado de ‘identity politics’, que é extremamente importante, mas abandonaram a economia. Se você pega o governo do PT, é uma tragédia feita pelo Lula, que colocou o Temer lá, ele que não quis regulamentar a mídia. A esquerda e a direita são neoliberais, hoje.”

Britney, estudante de Ohio e doutoranda em zoologia na USP, disse: “Um dos grandes empurrões desta marcha foi abrir as portas para pessoas que não são cientistas, porque isso [o ataque à ciência] se volta contra todos nós. A ciência é intrinsecamente uma parte da vida humana, e não há nada que alguém possa fazer para se separar disso. A ditadura tenta fazer isso porque eles não entendem, e é muito humano ter medo de coisas que você não entende e não sabe. A ciência é para o bem de todas as pessoas. Precisamos descobrir como garantir a segurança alimentar de todos os humanos deste planeta, com sete bilhões de pessoas, alimentando a todos nós sem prejudicar o único planeta que temos. Precisamos ter certeza de que as pessoas não estão morrendo de malária na África, de dengue aqui no Brasil.”

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