Mais de 4 milhões de brasileiros já assistiram ao filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, a 5º maior bilheteria na história do país. O longa estreou no Festival de Veneza em setembro do ano passado, onde foi ovacionado por dez minutos e venceu o prêmio de melhor roteiro. Desde então, tem conquistado o público e a crítica internacionais.
Foi nomeado como um dos cinco melhores filmes internacionais de 2024 pelo National Board of Review, venceu como Melhor Filme Internacional no Festival de Palm Springs, recebeu o prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-americano e foi indicado ao Oscar na categoria Melhor Filme, um feito inédito para o cinema brasileiro.
Baseado no livro homônimo do escritor Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui conta a história do desaparecimento de Rubens Paiva, que foi preso, torturado e morto pela ditadura militar, e a luta de sua esposa, Eunice Paiva, por justiça.
O ponto de vista é de uma família de classe média em 1970. Rubens Paiva, um membro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que teve seu mandato de deputado federal cassado após o golpe militar de 1964, trabalhava como engenheiro civil e vivia com a esposa e os cinco filhos em uma casa no Rio de Janeiro.
Na primeira cena, Eunice está no mar. Boiando, ela tem todo o barulho ao redor abafado pela água quando vê o céu azul e o silêncio serem atravessados por um helicóptero. A presença sinistra dos militares paira sobre ela.
A luminosidade é marcante em toda a primeira parte do longa, com uma ambientação ensolarada em pleno verão no Rio de Janeiro. Eunice e Rubens vivem com os filhos uma rotina alegre e afetuosa numa casa de portões baixos, de frente para a Praia do Leblon. Uma sensação de liberdade é enfatizada pela perspectiva dos filhos. Duas crianças e três adolescentes que entram e saem de casa à vontade entre uma brincadeira e outra na praia, atravessam as ruas sozinhas e vivem acompanhadas de amigos.
A vitalidade que rodeava a casa dessa família foi algo que o próprio diretor do filme, Walter Salles (Central do Brasil, Diários de Motocicleta, Linha de Passe), jamais esqueceu. Salles conheceu a família Paiva em 1969, quando tinha 13 anos, através de sua amiga Ana Lúcia, uma das filhas de Rubens e Eunice. A convivência certamente lhe deu uma compreensão íntima da dinâmica familiar, permitindo que ele conferisse ao filme sensibilidade e naturalismo notáveis.
A fotografia, ao explorar a gravação de uma câmera analógica nas mãos da filha mais velha, Vera (Valentina Herszage), contribui para uma viagem realista àquele início dos anos 1970 e dá ao espectador a sensação de adentrar à memória dos que estiveram ali.
O regime militar (1964-1985) já completava seis anos. Depois de sair da política oficialmente, o ex-deputado acreditava que estava seguro, ou pelo menos fazia questão de transmitir essa segurança. A imagem de um Rubens Paiva bem-humorado e até esperançoso, na atuação radiante de Selton Mello, demonstra isso.
No diálogo com um amigo que planeja sair do país e o convida para ir junto, ele recusa a ideia de um novo exílio e afirma não correr perigo. Mas, em outra cena, é convencido por Eunice de que o convite poderia ser aceito por Vera, a filha mais velha que já percebia a repressão do regime.
Em meio à alegria e excitação da juventude, Vera sai para um passeio com os amigos e eles são parados em uma blitz. Até aqui, o perigo da repressão ainda é só um túnel passageiro no meio do caminho, e se apresenta de forma sutil pelas notícias de rádio e televisão.
Eram os “anos de chumbo”, período considerado o mais violento da ditadura militar. Logo depois de enfrentar manifestações massivas e greves, o governo militar encerrara o ano de 1968 com o decreto do Ato Institucional número 5 (AI-5), que suprimiu direitos civis, instituiu um regime de censura e ampliou massivamente as prisões, torturas e assassinatos pelo Estado.
O filme não deixa de mostrar que o ex-deputado Rubens Paiva mantinha relações políticas informais e alguma colaboração clandestina com opositores do regime. Uma reportagem no telejornal sobre o sequestro do embaixador suíço por um grupo de guerrilheiros desperta apreensão no casal. Fica implícito o provável contato de Rubens Paiva com membros da guerrilha, e daí o receio de que ele fosse procurado pelos agentes da ditadura.
Em 16 de janeiro de 1971, o embaixador suíço foi solto em troca da libertação de 70 presos políticos, um episódio humilhante para o regime que levou os órgãos de repressão a uma caça às bruxas. No dia 20 de janeiro, seis agentes da Aeronáutica entraram na residência da família Paiva e levaram o ex-deputado, supostamente para um depoimento. Foi a última vez que Rubens Paiva foi visto pela família.
A atmosfera do filme muda completamente a partir do desaparecimento forçado de Rubens. Uma parte dos agentes permanece na casa e mantém reféns Eunice e os filhos. O cenário torna-se obscuro, os ambientes fechados dominam a tela, criando uma sensação de terror e incerteza, refletindo o impacto brutal da repressão estatal sobre a família.
No mesmo dia, Eunice e a filha Eliana, então com 15 anos, também são levadas para depor. Eliana permanece presa por 24 horas, Eunice por 12 dias, sendo interrogada. A realidade aterrorizante penetra na personagem. Nessa virada, a personalidade prática e sensata de Eunice adquire um caráter profundo e silencioso.
“Ela não pode simplesmente entrar em pânico. Ela não tem tempo para autopiedade. Mas há algo profundo em suas ações. Quando algo violento estava acontecendo com ela, ela permaneceu calma. Ela sorriu. Ela não demonstrou que estava sofrendo.”, explicou a atriz Fernanda Torres em entrevista à Variety.
Eunice e sua família veem sua confortável condição financeira ruir. Por não ter uma certidão de óbito, ela não consegue acesso aos bens de Rubens e se vê forçada a deixar a bela casa onde viviam. Ela vai para São Paulo com os filhos, volta a estudar e torna-se advogada enquanto luta para provar que o marido foi morto pelo Estado.
Na reação sóbria da personagem, a atriz foi capaz de expressar de forma delicada a opressão que recaía sobre os ombros de Eunice, assim como sua integridade e coragem. Na tentativa de não se deixar abater diante dos filhos menores, ela os leva para um passeio até a sorveteria. Sem dizer quase nada, o rosto e a postura de Torres transmitem ao mesmo tempo orgulho, melancolia e indignação da personagem, que observa outras famílias “completas”, e indiferentes à tragédia do país.
A performance madura de Fernanda Torres lhe rendeu uma indicação ao Oscar e o prêmio de melhor atriz no Globo de Ouro. Ao receber a premiação, completamente surpresa e sem um discurso preparado, Torres declarou que Ainda Estou Aqui é um filme “que pode nos ajudar a pensar em como sobreviver em tempos difíceis”.
Em muitas entrevistas, ela ressaltou a ressonância do filme no momento político atual. “Não é só no Brasil. Acho que a Eunice Paiva e a família Paiva foram vítimas da Guerra Fria, um momento muito distópico no mundo. (...) E tem muito a ver com o momento que estamos vivendo agora, eu acho.”, disse em entrevista à BBC.
Esta não é uma opinião apenas da atriz. Um grande trunfo do filme é justamente esse: o pressuposto de que os acontecimentos envolvendo a família Paiva são parte de uma história para onde devemos olhar agora, que deve ser discutida e trazida para o presente. Houve um esforço consciente da equipe, que trabalhou ativamente em debates após sessões em circuitos de cinema e festivais, em diferentes partes do mundo.
O impacto de Ainda Estou Aqui e suas implicações
A campanha de Ainda Estou Aqui ocorre em meio às tensões políticas no Brasil com o espectro de um novo golpe militar. Em dezembro do ano passado, o general cinco estrelas Walter Braga Netto foi preso por atrapalhar a investigação sobre a tentativa de golpe fascista de 8 de janeiro de 2023, que ele liderou ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Também em dezembro do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça determinou o reconhecimento e ratificação dos atestados de óbito dos 434 mortos e desaparecidos vítimas da ditadura militar catalogados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). O atestado de óbito de Rubens Paiva agora declara que sua morte foi violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964.
O filme Ainda Estou Aqui foi diretamente citado em uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino. Ao analisar um caso específico sobre o desaparecimento de militantes na Guerrilha do Araguaia, Dino propôs uma alteração na Lei de Anistia, de 1979, apresentando a tese de que o sumiço dos corpos, sem a possibilidade de sepultamento pelas famílias, é um crime permanente. Não poderia, portanto, ser perdoado.
“O crime de ocultação de cadáver tem, portanto, uma altíssima lesividade, justamente por privar as famílias desse ato tão essencial (o sepultamento). No momento presente, o filme “Ainda Estou Aqui” tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos.”, escreveu o ministro do STF.
Mas, em vez de significar um compromisso do governo e das instituições democráticas no enfrentamento ao legado da ditadura, a atitude de Dino expõe a fragilidade da democracia burguesa, que não puniu os militares nem os enfrentou no poder. No ano passado, no 60º aniversário do golpe militar de 1964, o governo Lula tentou minimizar sua importância, cancelando cerimônias oficiais e evitando discussões sobre o assunto.
Nesse contexto, a repercussão do filme tem sido usada pela imprensa brasileira como um exemplo de que a defesa da democracia burguesa e de suas instituições é o caminho a seguir.
Afinal, assim poderíamos resumir os passos percorridos por Eunice. Como advogada e esposa de Rubens Paiva, ela lutou pelas vias legais do próprio Estado, para que este reconhecesse a morte do marido. O atestado de óbito – uma grande vitória para a família – só veio em 1996, quando o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sancionou uma lei que reconhecia como mortas as pessoas “desaparecidas” durante a ditadura militar.
Nessa época, a viúva de Rubens Paiva integrava a comissão montada pelo governo para analisar indenizações aos parentes das vítimas. Mais de dez anos depois, em 2012, a criação da Comissão Nacional da Verdade revelou novos fatos sobre o caso de Rubens Paiva. O que segundo o filho dele, Marcelo Rubens Paiva, contribuiu para reconstruir a história contada no livro que deu origem ao filme.
Estabelecendo-se como defensora dos direitos humanos, Eunice dedicou-se à causa dos povos indígenas do Brasil, atuando como advogada contra desapropriações de terras sofridas por essa população. Em 1988, foi consultora da Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Constituição Federal Brasileira.
A trajetória de Eunice e a família Paiva coincide em muitos pontos com a do próprio país. E uma das confluências mais significativas está no partido político ao qual Rubens era filiado, o PTB, cujo papel histórico foi de relevância crucial para os acontecimentos que levaram ao golpe de 1964.
Fundado em 1945 pelo ex-presidente Getúlio Vargas para, em suas palavras, “servir para separar os sindicatos e os comunistas”, o PTB foi baseado na política do corporativismo. Em uma época que o Brasil vivia uma expansão da indústria e da classe operária, o PTB funcionou como um instrumento para cooptar lideranças sindicais e manter o movimento trabalhista sob a égide do Estado.
João Goulart, herdeiro político de Vargas, assumiu a liderança do partido e levou adiante a política nacionalista do PTB ao tomar posse da presidência em 1961. O país vivia uma intensificação da luta de classes – em 1953 com a “Greve dos 300 mil”, em 1957 com a “Greve dos 400 mil” e em 1963 (com Goulart já na presidência) a “Greve dos 700 mil”.
Enquanto a classe operária avançava rapidamente, o PTB e João Goulart, apoiados pelo stalinista Partido Comunista Brasileiro, promoviam a ilusão nas reformas implementadas pelo Estado burguês e subestimavam o perigo de um golpe fascista apoiado pelo imperialismo. João Goulart e seu PTB serviram, essencialmente, como um bloqueio ao avanço revolucionário das massas.
Logo que foi eleito deputado federal, em 1962, Rubens Paiva participou da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Essas organizações eram suspeitas de receber financiamento estrangeiro, especialmente dos Estados Unidos, para influenciar o processo político brasileiro e promover campanhas anticomunistas. Mais tarde, não só a influência, mas também o papel decisivo dessas instituições “democráticas” lideradas pelo imperialismo no golpe militar brasileiro foram confirmados.
Na madrugada de 1º de abril, quando a Junta Militar já tomava o poder, Rubens Paiva fez um pronunciamento histórico na Rádio Nacional. Conclamou trabalhadores e estudantes a resistirem ao golpe com uma greve geral, de forma “pacífica”, “obedecendo às palavras de ordem dos sindicatos” e “em solidariedade integral à legalidade que ora representa o presidente João Goulart”. Paiva defendeu que as reformas propostas por Goulart visavam a emancipação política e econômica do país.
“Está lançado inteiramente para todo o país o desafio: de um lado, a maioria do povo brasileiro desejando as reformas e desejando que a riqueza se distribua, os outros são os golpistas que devem ser repelidos e desta vez, definitivamente para que o nosso país veja realmente o momento da sua libertação raiar”, concluiu o discurso.
Apesar do tom radical do então deputado federal Rubens Paiva, o próprio João Goulart, presidente deposto e principal liderança do PTB, optou por não resistir para evitar uma guerra civil. O PTB foi imediatamente desmantelado após o golpe. O partido, que havia sido uma das principais forças políticas do país, encerrou abruptamente suas atividades.
No dia 10 de abril de 1964, Rubens Paiva teve seu mandato cassado pelo primeiro Ato Institucional (AI-1). Diante da repressão, buscou asilo na Embaixada da Iugoslávia e posteriormente exilou-se na Europa. Retornou ao Brasil em 1965, onde continuou suas atividades como engenheiro e manteve contato com exilados políticos, até ser preso e morto pelo regime militar em 1971.
O Partido Comunista do Brasil (PCB), que trabalhou por anos para subordinar a classe trabalhadora ao PTB e à burguesia nacional, minimizando sistematicamente o perigo do fascismo, não tinha perspectiva para apresentar à classe trabalhadora. Paralelamente, os renegados pablistas do trotskismo impediram o desenvolvimento de uma alternativa revolucionária ao liquidar a significativa influência política do trotskismo - adquirida entre a classe trabalhadora brasileira - no stalinismo, no nacionalismo burguês e no guerrilheirismo.
A classe trabalhadora havia sido desarmada politicamente e foi completamente entregue aos militares fascistas. Vinte mil pessoas foram torturadas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), segundo levantamento da Human Rights Watch (HRW). Embora os números oficiais mencionem 434 mortes, recentemente a atual presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos declarou que pode passar de 10 mil o número de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. Um estudo publicado em 2024 pela Universidade de Brasília apontou que, só entre os camponeses, foram 1.654 vítimas.
É justo dizer que não se espera do diretor Walter Salles e de seu filme a cobertura de todas as forças políticas e históricas que moldaram as vidas de Rubens e Eunice Paiva. Ao mesmo tempo, há uma decisão política na escolha desses personagens e no foco restrito a um momento específico de suas vidas.
Por meio desse retrato, no entanto, Ainda Estou Aqui afirma sua relevância ao apresentar uma obra comovente que tem sido capaz de conquistar um público massivo e despertar a reflexão popular sobre o período mais crítico da história do país no último século, essencial para responder aos desafios políticos atuais.
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