Português

CPMI da tentativa de golpe do 8 de janeiro é marcada por sigilo e acobertamento dos militares

Passados cerca de dois meses da instalação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dedicada a investigar a tentativa de golpe bolsonarista de 8 de janeiro, seu conteúdo político real ficou claro: a CPMI, que deveria ser o órgão democrático máximo de investigação da conspiração fascistoide no país, é refém dos conspiradores bolsonaristas e de seus protetores no aparato judiciário, policial e militar.

Manifestantes bolsonaristas invadem edifícios do governo brasileiro. [Photo: Marcelo Camargo/Agência Brasil]

O caráter anti-democrático com o qual frações majoritárias da classe dominante tentam lidar com os planos para um golpe é revelado pela aceitação, por parte da liderança da CPMI, de que os dados utilizados para processar e prender algumas das mais relevantes autoridades envolvidas na conspiração golpista sejam acessados sob regras draconianas em uma “sala secreta” no Senado Federal, sendo ocultadas da população.

O uso da “sala secreta” foi uma imposição do todo-poderoso ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, que conduz, sem nenhuma supervisão e com a conivência covarde das autoridades eleitas, um inquérito sigiloso no qual baseiam-se todas as medidas judiciais relevantes contra figuras-chave do bolsonarismo.

Comprometido com a estabilidade capitalista a qualquer custo e incapaz de fazer qualquer apelo à classe trabalhadora, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) endossa qualquer medida tomada por Moraes em seu inquérito sem controle. O governo age na vã esperança de neutralizar Bolsonaro e ao mesmo tempo absolver o apodrecido sistema político que o criou, do qual o PT é parte crucial.

Segundo as exigências de Moraes, para ter acesso à infinidade de evidências da conspiração golpista já coletadas pelo aparato policial e de inteligência que se encontram sob seu controle, senadores e deputados que compõem a CPMI deverão acessar uma sala-cofre no subsolo do Senado sem quaisquer instrumentos que não papel e caneta, deixando seus celulares de fora. Toda sua atividade será monitorada eletronicamente: a sala é vigiada por câmeras e os computadores com acesso aos documentos monitorarão quem acessou qual material e por quanto tempo. Cada parlamentar poderá nomear apenas um assessor para auxiliá-lo na tarefa.

Tais procedimentos restritivos impedem qualquer análise séria da documentação. O ministro Moraes, com um exército de técnicos e policiais ao seu dispor, permanece como o único a ter uma visão completa da conspiração. Longe de usar qualquer procedimento parlamentar para fazer valer a autoridade dos representantes eleitos para investigar o mais alto dos crimes contra a limitada democracia que todos declaram defender, senadores e deputados servilmente aceitaram as imposições e estão até agora a esperar o compartilhamento dos dados pedidos a Moraes.

O pedido em si de compartilhamento dos dados do inquérito secreto de Moraes pela CPMI tenta resolver uma contradição que ficou patente nos dois primeiros meses de trabalho do órgão – sua falta de autonomia diante dos militares, dos próprios bolsonaristas que compõem um quinto do Congresso e estão representados na comissão, e do próprio governo Lula. Este último tem como único objetivo restaurar a confiança da população nas forças de segurança implicadas no golpe e apaziguar seus elementos mais autoritários com a promessa de bilhões de reais em compras de armas e investimentos na indústria bélica nacional, da qual as forças armadas extraem fortunas em royalties.

Como resultado, a CPMI segue até agora os passos da investigação conduzida por Moraes, buscando ouvir figuras já publicamente indiciadas pelo ministro, e assim vistas como alvos fáceis. Apesar de uma longa lista de convocações já aprovadas que incluem figuras poderosas da conspiração, como o ultrarreacionário ex-chefe da inteligência brasileira sob Bolsonaro, o general Augusto Heleno, o principal depoimento até agora foi o do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Coronel Mauro Cid. Na posse de Cid foram encontradas mensagens expondo um plano para anular as medidas das autoridades eleitorais e impor um governo provisório pró-Bolsonaro.

O exemplo de Cid é emblemático das contradições que atravessam a CPMI. Cid está preso preventivamente por ordem de Moraes, e ao comparecer à audiência da CPMI trajava seu uniforme e condecorações militares. Como emergiu imediatamente, a orientação para o uso dos trajes militares foi dada diretamente pelo Alto-Comando do Exército, em um claro sinal de intimidação das autoridades civis. O ex-vice-presidente sob Bolsonaro e atual senador, General Hamilton Mourão, reforçou a mensagem dos militares ao defender no Twitter no dia da audiência que “para nós, SOLDADOS, lealdade e camaradagem são valores INEGOCIÁVEIS”, isto é, acima da lealdade à constituição civil.

Em suas poucas semanas na prisão, Cid recebeu nada menos que 73 visitas, incluindo do primeiro Comandante do Exército nomeado por Lula para seu terceiro mandato – e demitido um mês depois –, general Júlio César Arruda.

Seu “depoimento” consistiu em permanecer calado por 7 horas. Para acobertar sua própria covardia, deputados governistas encheram os jornais noturnos com uma gritaria reacionária sobre o “abuso do direito ao silêncio” por parte de Cid, que em nada mudou que os militares continuam intocados pela investigação. No mesmo dia, o próprio Ministro da Defesa de Lula defendeu o uso da farda por Cid e negou o envolvimento de militares de alta patente na conspiração golpista.

A covardia governista esteve presente desde os preparativos da CPMI. O governo jamais escondeu sua preferência de que toda a investigação ficasse a cargo de Moraes, o que significaria mantê-la a portas fechadas e poder negociar seu direcionamento para bodes-expiatórios convenientes, preservando o sistema político.

Os cálculos políticos feitos pela classe dominante brasileira sobre os benefícios de uma ditadura de Bolsonaro foram tão abertos e amplos que uma investigação real da conspiração golpista equivaleria a um indiciamento de todo o sistema político. Nas primeiras posições da enorme fila de indiciados estariam os aliados do governo do PT no Congresso.

Até seis meses atrás, o PT acusava tais aliados de serem “cúmplices de genocídio” por bloquearem a investigação de Bolsonaro por promover o máximo de contaminação possível da população brasileira desde o estouro da pandemia de COVID-19.

No entanto, apesar de tais manobras, as profundas ramificações da conspiração no aparato estatal continuam a ser reveladas a cada dia. Um longo artigo no diário inglês Financial Times, de 20 de junho, narra uma série sem precedentes de visitas de bastidores ao Brasil por altas autoridades diplomáticas, militares e de inteligência dos EUA em 2021 e 2022. Com base no testemunho de participantes-chave das visitas, o artigo relata diversas discussões com o objetivo de convencer os militares brasileiros a não apoiar um golpe liderado por Bolsonaro.

O artigo revela que o então comandante da Marinha do Brasil, Almirante Almir Garnier Santos, foi o de “mais difícil” dissuasão. O artigo também nomeia, conforme relato do antigo alto funcionário do Departamento de Estado dos EUA, Tom Shannon, o ex-vice-presidente Mourão como uma das autoridades brasileiras abordadas para tratar da ameaça de golpe em julho de 2022, em um evento empresarial em Nova York.

Os testemunhos dados por altas autoridades de política externa dos EUA – e corroboradas por inúmeros outros relatos – foram até agora completamente ignoradas por todas as investigações sobre a tentativa de golpe. Não há sinal de convocação para esclarecimentos do General Mourão, do Almirante Garnier, ou de qualquer autoridade diplomática do Brasil ou dos EUA.

Ao mesmo tempo, o artigo do FT expõe as enormes pressões imperialistas sobre o governo Lula. Apesar das alegações pró-forma de que “foram as instituições brasileiras que realmente garantiram que ocorressem eleições”, a mensagem das autoridades dos EUA é de que Lula é seu refém. Como declara Shannon, Washington vê o questionamento por parte de Lula de suas políticas de guerra contra a Rússia e a China como simplesmente inaceitáveis: “é como se ele não soubesse ou não quisesse reconhecer o que fizemos.”

O imperialismo americano, principal patrocinador de golpes e ditaduras sangrentas na América Latina há mais de um século, quer deixar claro que, quaisquer que tenham sido as considerações táticas por trás de sua oposição a um golpe de Bolsonaro, a única coisa que impede Washington de apoiar a derrubada do governo do PT são cálculos baseados em conveniência política.

Tais ameaças são sem si mesmas um fator adicional de instabilidade, ao expor a fragilidade do governo não apenas diante de seus inimigos na extrema-direita, mas fundamentalmente diante da classe trabalhadora. Será a classe trabalhadora em mobilização independente e com uma perspectiva socialista e internacionalista – e não o estado policialesco sendo construído ao redor do todo-poderoso ministro Moraes – que enterrará de vez a ameaça fascista e imperialista ao Brasil ao atacar sua causa: o sistema capitalista internacional apodrecido.

Loading