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“Reabertura de escolas será catastrófica”, alerta pesquisador Lucas Ferrante

Parte Um

Impulsionada pelo completo abandono de medidas de isolamento social pela elite dominante brasileira, a variante Ômicron mais contagiosa está produzindo uma explosão da pandemia de COVID-19 no Brasil. Na terça-feira, o país registrou uma média de 160 mil casos e 322 mortes, um aumento de, respectivamente, 203% e 170% em relação a duas semanas atrás. Isso está levando a um aumento exponencial na ocupação de leitos de UTI em todo o país, inclusive de crianças, ameaçando um novo colapso de saúde.

Esse cenário já dramático pode se tornar “catastrófico” com a reabertura de escolas marcada para semana que vem em todo o Brasil, alertou Lucas Ferrante em entrevista ao World Socialist Web Site. Pesquisador do renomado Instituto de Pesquisas da Amazônia (INPA), em Manaus, os estudos de Ferrante sobre a pandemia têm sido publicados nas revistas científicas mais prestigiadas do mundo, como a Science e a Nature, e têm efetivamente exposto as políticas de “imunidade de rebanho” do presidente fascistoide Jair Bolsonaro e de seu aliado local, o governador do Amazonas Wilson Lima.

Alvo de frequentes ataques por esses trabalhos, Ferrante disse que chegou até a receber um “um e-mail interno do INPA ... falando que eu deveria me calar uma vez que estava alertando sobre a segunda onda [que explodiu em janeiro de 2021]. Um funcionário do INPA me procurou e disse que ‘a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) veio aqui para pegar seus dados pessoais.’”

Na sexta-feira passada, quando conversamos com Ferrante, ele estava se recuperando de uma tireoidectomia. No ano passado, ele foi diagnosticado com um câncer na tireoide depois de encontrar uma pilha na tubulação de água de sua casa, no que se suspeita ter sido uma tentativa de assassinato. “A gente sabe que o lítio presente na pilha é algo que ataca principalmente a tireoide,” Ferrante explicou, “o que corrobora a hipótese” de o envenenamento ter causado o câncer.

Manaus está mostrando que a Ômicron é a pior de todas as variantes

Contrariando a alegação da mídia brasileira e mundial de que a Ômicron é “leve”, Ferrante explicou que “a gente não tem como avaliar o potencial dela sem a vacina. A Ômicron não está sendo devastadora [para mortes] porque nós temos a vacina ... O que a gente está vendo é que a vacina está sendo eficiente, não que Ômicron não é devastadora, muito pelo contrário.”

“Nós temos evidências disso. Anteontem e ontem [19 e 20 de janeiro], Manaus registrou números recordes de infecção pela variante Ômicron, que é predominante em 93% dos casos. Para Manaus bater recordes de infecção, e nós conhecemos o histórico de Manaus [das duas ondas anteriores], isso mostra que a Ômicron é a pior, a mais terrível e mais virulenta de todas as variantes que já surgiram.”

Essa situação, para Ferrante, aponta para um iminente colapso no sistema de saúde de Manaus e do Amazonas, onde as internações aumentaram 856% nas três primeiras semanas deste mês. “Ontem, o Delfina Aziz e o 28 de Agosto, que são os dois hospitais que recebem caso de COVID, estavam com 100% de ocupação dos leitos de UTI.”

Isso, por sua vez, irá impulsionar número de mortes: “Nos nossos estudos, através de modelos epidemiológicos, vimos que o índice de mortalidade pode dobrar ou triplicar com o colapso do sistema de saúde.”

Ele ainda alertou que a situação de Manaus pode se estender a todo o país: “Se hoje nós estamos vendo um grau de letalidade baixo para a COVID no Brasil, isso vai mudar porque nós estamos começando a entrar num quadro de colapso que a letalidade muda. Aí a vacina não é suficiente, e precisamos frear a transmissão comunitária [com medidas de isolamento social] para impedir novos casos e de fato desafogar o sistema de saúde.”

A volta às aulas será catastrófica

Com a volta às aulas programada para a semana que vem em todo o Brasil, Ferrante alertou para um agravamento da pandemia com o aumento da transmissão comunitária. “Nós já estamos antevendo um sinal catastrófico para pelo menos três estados que nós temos avaliado, Paraná, Minas Gerais e Amazonas, mas isso vai se replicar para outros estados.”

As avaliações de Ferrante utilizam um modelo padrão em epidemiologia, o SEIRS (Suscetível - Exposto - Infectado - Removido - Suscetível). Numa letter publicada na Nature Medicine em agosto de 2020, esse modelo conseguiu prever a segunda onda em Manaus com quatro meses de antecedência. Também utilizando esse modelo, um outro estudo liderado por Ferrante, publicado no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities em setembro do ano passado, mostrou “que o retorno das aulas presenciais em Manaus não só gerou a segunda onda, isso está comprovado, como gerou a variante Gama”, disse. No início de 2021, essa variante viria a ser a responsável pela segunda onda mortal na cidade, em todo o Brasil e na América Latina.

Mais uma vez, Ferrante alertou: “Nós já compreendemos que precisamos de gatilhos para esse aumento de casos, e os gatilhos para a onda atual foram as festas de final de ano. Agora, nós vamos repetir o principal gatilho, o pior, que é o retorno das aulas presenciais? Festas de final de ano não aumentam a transmissão comunitária e a mobilidade urbana em mais de 40%, 50%, o retorno das aulas aumenta. Então isso vai ser catastrófico.”

A reabertura de escolas no Brasil coincidirá com o pior momento do surto da Ômicron, com o país podendo ultrapassar um milhão de casos registrados no início de fevereiro, segundo projeção da Universidade de Washington.

Ferrante fez também questão de enfatizar o aumento de casos intrafamiliar com a variante Ômicron e o papel das crianças na dinâmica da pandemia: “Quando a gente fala de criança em isolamento social, a gente não está falando só em proteger as crianças, a gente fala em diminuir o grau de contaminação na sociedade ... mesmo assintomática, elas estão transmitindo para todo mundo. Elas vão começar a conviver dentro do ônibus com o profissional de saúde que irá para o hospital lotado. Ela vai pegar dentro do ônibus e transmitir para a família. Os protocolos em escolas de fato não funcionam.”

A COVID não irá se tornar endêmica

Levando em consideração a enorme transmissibilidade da Ômicron – muito mais infecciosa que o vírus do sarampo, até então o vírus mais infeccioso conhecido –, o caráter global da pandemia e a possibilidade de uma nova variante de preocupação surgir com o abandono das medidas de isolamento social, particularmente a volta às aulas, Ferrante não acredita que a COVID irá se tornar endêmica.

“Eu não acho que isso vai terminar em uma endemia, porque nós estamos exportando variantes, todas as variantes que surgiram não ficaram no mesmo lugar. Além disso, a transmissibilidade [da Ômicron] é muito grande. A transmissão passa por aeroporto, por barco, a gente não está isolando nenhum lugar devidamente do resto do mundo. Eu vejo como muito impossível de se tornar uma endemia.”

Ele ainda explicou: “Nós estamos dando origem cada vez mais a variantes mais virulentas. E por quê? É uma questão de evolução, de seleção natural. Se eu tenho uma coisa extremamente letal, eu mato aqueles suscetíveis, e eu mantenho aqueles indivíduos mais resistentes na minha população.” Com o abandono de todas as medidas de isolamento social, “nós estamos aumentando a gama de indivíduos suscetíveis,” continuou. “Então eu não consigo selecionar indivíduos, eu vou ter uma parcela de indivíduos muito maior do que eu tinha na onda anterior porque a população, ao invés de entrar em isolamento social para se ter uma baixa camada de contaminados, eu estou aumentando minha população exposta. Não está havendo uma seleção de novos indivíduos ... Eu estou colocando mais indivíduos em contato do que eu estou selecionando indivíduos resistentes, porque cada vez menos nós temos isolamento social.” Isso se reforça pela diminuição da imunidade pelas vacinas e, principalmente, pelo contato com o vírus.

Ferrante vê dois cenários possíveis para daqui um ano: “Ou nós vamos ter gerado agora, com o aumento da transmissão comunitária, jogando todas as crianças para conviver em sociedade com a reabertura de escolas, uma variante resistente às vacinas, e nós vamos estar mais uma vez num dos piores pontos da pandemia; ou nós vamos tomar as medidas corretas agora [isolamento social e 95% da população vacinada] e no ano que vem a gente não vai estar falando de COVID.”

Continua

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