Publicado originalmente em 13 de março de 2021
Em uma decisão inesperada na segunda-feira, o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin anulou as duas condenações por corrupção do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o impediam de concorrer em eleições. O Ministro Fachin decidiu que ambos os casos tinham que ser julgados novamente pela vara de Brasília, porque a 13a vara de Curitiba que o condenou não tinha jurisdição sobre o caso.
Os casos de corrupção contra Lula são derivados da Operação Lava Jato, que descobriu um enorme esquema de propinas centrado na gigante petrolífera estatal Petrobras. Os esquemas de corrupção, envolvendo praticamente todos os partidos políticos brasileiros, haviam sido supervisionados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula durante o período em que o PT se tornou o instrumento de governo preferencial da classe dominante brasileira. Entre 2003 e 2016, o PT ganhou quatro eleições presidenciais consecutivas, primeiro com os dois mandatos de Lula (2003-2010), e depois com as duas vitórias de sua sucessora escolhida a dedo, Dilma Rousseff.
Este período terminou em 2016 com a destituição de Dilma Rousseff em um impeachment fraudulento realizado pelos ex-cúmplices de corrupção do partido, entre eles o então deputado federal Jair Bolsonaro. Explorando o descrédito do PT pelos escândalos generalizados e suas políticas de austeridade diante da crise econômica do país, eles impuseram uma redistribuição maciça de riqueza da base para o topo da pirâmide social, impondo um congelamento de 20 anos nos gastos públicos e aprovando uma reforma trabalhista que provocou enormes reduções salariais.
Lula foi condenado duas vezes em 2017 e 2018 em casos inter-relacionados de recebimento oculto de propinas de dois réus chave na investigação, as gigantes da construção OAS e Odebrecht. Essas propinas foram supostamente na forma de melhorias numa cobertura em frente à praia e numa propriedade rural pertencentes formalmente a um aliado político de Lula e à própria OAS.
Além de apresentar recursos negando todas as acusações, a defesa de Lula havia apresentado um habeas corpus alegando que as acusações não tinham relação direta com o escândalo da Petrobras sendo investigado pela vara de Curitiba, e deveriam ser julgadas por outro tribunal. Este argumento foi finalmente aceito pelo Ministro Fachin na segunda-feira, abrindo o caminho para o retorno político de Lula.
Ainda restam dúvidas sobre se Lula pode ser barrado novamente se novos julgamentos em Brasília se moverem com rapidez suficiente, ou se a decisão de Fachin for derrubada pelo plenário do STF. Essas dúvidas não impediram que a reabilitação de Lula fosse notícia de primeira página em todo o mundo e desencadeasse uma enxurrada de especulações na grande imprensa internacional - entusiasticamente exageradas pela pseudo-esquerda internacional - de que Lula poderia "salvar o Brasil de Bolsonaro", que chocou o mundo com sua atuação sociopática diante da pandemia da COVID-19.
Do ponto de vista de milhões de trabalhadores que enfrentam os horrores da pandemia, a notícia de uma alternativa política para enfrentar o desastre social no Brasil é sem dúvida esperada ansiosamente. Bolsonaro preside agora o epicentro mundial da pandemia, com uma catástrofe sem precedentes de mais de 2.300 mortes por dia, que se somam às mais de 270.000 mortes até agora ao longo de um ano de pandemia. Os hospitais estão lotados em todo o país de 210 milhões de habitantes. Diante do que os cientistas e especialistas médicos estão descrevendo como um cenário de guerra, mesmo no estado mais rico do país, São Paulo, Bolsonaro tem se lançado até mesmo contra as mais brandas e ineficazes restrições à atividade econômica decretadas por governadores e prefeitos, incluindo o uso de máscaras.
No entanto, a tentativa de retratar como alternativa o fantoche do capital financeiro, Lula, líder de um partido que, enquanto governou, se aliou às forças mais reacionárias do Brasil, incluindo o próprio Bolsonaro, é, francamente, politicamente criminosa.
Liderando a carga na promoção de Lula está a principal voz do imperialismo "democrático", o New York Times, que elogiou Lula como um "empolgante líder de esquerda" e proclamou que a decisão do Ministro Fachin tinha "o potencial para remodelar o futuro político do Brasil". Mas foi a porta-voz dos apologistas pseudo-esquerdistas do imperialismo americano, a revista Jacobin, que ofereceu o relato mais exagerado e comprometedor do possível retorno político de Lula.
A reportagem de Jacobin, intitulada "Lula Está de Volta - E Ele Pode Salvar o Brasil de Bolsonaro", não resiste sequer a uma comparação com o primeiro discurso público do próprio Lula após a decisão. O discurso proferido quarta-feira na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC foi uma profissão de fé pró-capitalista e pró-militar, temperada com obviedades sobre a atitude de Bolsonaro diante da pandemia, a necessidade de vacinas, máscaras e distanciamento social, juntamente com a pregação moral sobre a necessidade de "olhar para os pobres". No momento mais crítico do discurso, ele disse a sua audiência: "Não siga uma única decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da saúde. Tome vacina!"
O artigo da Jacobin não se preocupa em apresentar nenhuma razão pela qual o PT reverteria as políticas que levou a cabo no governo, que abriram caminho para a ascensão do governo mais direitista do Brasil desde a ditadura militar de 1964-1985, apoiada pelos EUA. Em vez disso, a peça se baseia inteiramente em uma suposição, de que a queda das bolsas de valores brasileiras no dia da decisão de Fachin havia sido uma indicação de que Lula executaria políticas anticapitalistas. Diz a Jacobin: "É revelador, no entanto, que a bolsa de valores brasileira tenha caído 4%, e o real caído para níveis mínimos históricos em relação ao dólar, após a notícia do veredito. Os investidores aparentemente não estavam muito preocupados com os números apocalípticos da COVID-19 vindos do Brasil - mas o retorno de Lula levou ao pânico total".
Esta suposição é totalmente falsa. Como a Reuters observou em uma análise da reação do mercado à decisão na terça-feira, antes da decisão do Ministro Fachin, o real brasileiro havia registrado o terceiro pior desempenho no mundo em relação ao dólar. A Bolsa de Valores de São Paulo caiu 20% em 2021. O último choque veio com as tentativas de Bolsonaro de dissipar uma crise inflacionária demitindo o presidente da Petrobras, culpando-o pelos altos preços dos combustíveis - um movimento recebido com entusiasmo pelo PT e pelos sindicatos de petroleiros controlados pelo PT, reunidos na FUP.
Uma avaliação mais sóbria e realista foi feita pelo Financial Times, que citou Monica de Bolle, uma das principais pesquisadoras do Peterson Institute, em Washington. "O que eu vejo acontecer é um acerto de contas com o fato de que Bolsonaro é uma enorme ameaça à estabilidade institucional", disse ela. "O cálculo então se torna: 'o que é menos desestabilizador?’". Essa também foi a análise feita pela Foreign Policy, cuja correspondente para América Latina Catherine Osborn disse ao Morning Brief que, depois que Bolsonaro demitiu o CEO da Petrobras, "uma administração Lula pode ser uma melhoria", concluindo: "eu acho que é possível que uma administração Lula possa ser um ator econômico mais 'racional' no que diz respeito aos mercados".
A matéria da Jacobin não consegue escapar de uma questão central, a da pressão por uma ditadura por parte da elite dominante do país, liderada pelo comandante do exército nomeado por Dilma, o general Eduardo Villas Bôas, um entusiasta do programa de rearmamento de Lula. A Jacobin afirma: "o elefante na sala é como os militares brasileiros responderão". Embora lembre que Villas Bôas ameaçou um golpe em abril de 2018 se o STF concedesse outro habeas corpus a Lula, a Jacobin nunca pergunta a resposta de Lula a tais ameaças. Fazer essa pergunta significaria desmascarar o argumento a favor do potencial de Lula para "salvar o Brasil" do desastre atual, já que o PT se dedica a anestesiar a classe trabalhadora para a ameaça de ditadura.
Todo o discurso e entrevista coletiva de Lula ao longo de três horas na quarta-feira foi um exercício de fraude e gestos às grandes empresas, às forças armadas e à polícia.
Lula começou com uma de suas auto-promoções hiperbólicas, minimizadas por seus apoiadores como idiossincrasias cativantes, alegando ser vítima da "maior mentira judicial em 500 anos de história", ou seja, em toda a história do Brasil.
Ele então se voltou para cortejar o exército e a polícia. Lula criticou os decretos de Bolsonaro para desregulamentação da compra de armas, afirmando que o presidente "não é eleito para incentivar a compra de armas" e que “quem está precisando de armas são as nossas forças armadas. Quem está precisando de arma é a nossa polícia, que muitas vezes sai pra rua pra combater a violência com um 38 velho todo enferrujado.”
Esta declaração sinistra em apoio a um aparato policial que mata 6.000 brasileiros por ano foi feita contra o pano de fundo de uma ameaça de greve das forças policiais contra Bolsonaro por suas medidas de austeridade, às quais a bancada do PT respondeu alegando que Bolsonaro havia "traído" a polícia.
Lula prosseguiu para o chauvinismo nacionalista que se tornou a marca do PT após o esgotamento de seus programas de alívio da pobreza e o início do crescimento da agitação social em 2013. "O Brasil nasceu para ser grande", disse ele, acrescentando que, sob o governo do PT, o Brasil era "respeitado pela China, pela Rússia, pela Índia, pela Alemanha, pela França, pela Inglaterra, pelos Estados Unidos".
Ao criticar o programa de privatização da Petrobras, concebido para reduzir em um terço a força de trabalho da empresa e cortar custos, Lula ignorou a resistência dos petroleiros e divagou em uma linha chauvinista ainda mais reacionária, dizendo que "a Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina." Devido às necessidades militares, "os países ricos todos têm grande estoque de combustível", continuou ele, dizendo que o Brasil, "um puta dum país grande", está se desfazendo de seu petróleo.
Em sua conclusão, Lula se dirigiu aos grandes empresários, dizendo-lhes: "não tenham medo de mim". Ele criticou a ortodoxia do livre-mercado e virtualmente prometeu generosos resgates monetários aos crimes financeiros. Citando a crise de 2008, ele disse: "quando eles quebram, quem é que coloca dinheiro para salvá-los? O Estado! O Estado que eles repudiam, o Estado que eles destroem".
Na seção de perguntas e respostas, houve uma ênfase ainda maior na linha chauvinista do PT. Quando perguntado pela Al Jazeera sobre o impacto internacional de seu retorno, Lula divagou novamente com uma arrogância delirante, alegando que o acordo nuclear iraniano, mediado por ele mesmo e pelo presidente turco Erdogan em 2010, havia sido sabotado para atingir o prestígio do Brasil, concluindo que iria restaurar a credibilidade internacional do Brasil para atrair de volta antigos investidores.
Como muitos comentaristas observaram, Lula evitou a todo custo mencionar Rousseff ou seu impeachment, que o PT classifica como um golpe sempre que sente a necessidade de eximir-se de responder questões sobre suas alianças com aqueles que os depuseram, em especial o vice-presidente de Rousseff, Michel Temer.
As políticas do PT em relação à pandemia da COVID-19 são tão criminosas quanto as de Bolsonaro, exceto pela retórica incendiária do presidente. Isto foi inegavelmente comprovado pela renúncia coletiva de membros do comitê científico que serve aos governos estaduais do PT nos bastiões da oposição no Nordeste do país. Liderados pelo renomado neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, da universidade Duke, apoiador público do PT há décadas, os cientistas renunciaram em protesto em 19 de fevereiro, diante da inação dos governadores da oposição, quando ficou claro que o Brasil estava caminhando para a atual catástrofe na pandemia
O objetivo do PT não é salvar a classe trabalhadora brasileira, mas resgatar o capitalismo brasileiro das mãos de Bolsonaro, cujas políticas são vistas por setores cada vez maiores da classe dominante como uma ameaça aos seus interesses.
A reabilitação política de Lula coloca imensos perigos aos trabalhadores brasileiros, incluindo a ameaça de um golpe militar, que o PT se dedica a encobrir e não tem a intenção de impedir.
A classe trabalhadora brasileira está cada vez mais agitada, com mais e mais greves e manifestações espontâneas contra a política assassina de imunidade de rebanho sendo seguida por toda a classe dominante. O momento da decisão do Ministro Fachin, quaisquer que sejam suas motivações jurídicas, serve a claras necessidades políticas de canalizar a crescente oposição de volta às instituições do Estado capitalista.
É de suma importância que Lula tenha escolhido a sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC como local para sua coletiva de imprensa. Apesar da tentativa do PT de retratar essa escolha como uma “volta às raízes,” a integração dos sindicatos ao aparato estatal para disciplinar a força de trabalho está surgindo como um requisito crucial para sustentar a apodrecida ordem capitalista. A mesma tendência foi demonstrada nos EUA pela intervenção sem precedentes do presidente Joe Biden, a principal autoridade do imperialismo mundial, em favor da sindicalização na Amazon.
À medida que a classe dominante tenta reabilitar Lula e desorientar politicamente os trabalhadores, é cada vez mais urgente que a natureza pró-capitalista do Partido dos Trabalhadores, dos sindicatos que controla, e dos grupos pseudo-esquerdistas que os orbitam seja compreendida pelos trabalhadores brasileiros.
Uma nova direção política precisa ser construída na classe trabalhadora, em oposição consciente ao PT e aos sindicatos e enraizada na experiência internacional da classe trabalhadora, personificada pela liderança do movimento trotskista mundial, o Comitê Internacional da Quarta Internacional. Isto significa unir-se à luta do Grupo Socialista pela Igualdade (Brasil) na construção da seção brasileira do CIQI.