Publicado originalmente em 11 de dezembro de 2019
A Câmara dos Deputados aprovou em 4 de dezembro o draconiano pacote anticrime, expandindo enormemente os poderes repressivos do estado e aumentando as sentenças de prisão para uma ampla gama de crimes. A medida atraiu esmagador apoio da assim chamada “oposição” ao presidente Jair Bolsonaro, que acabara de anunciar a criação de um novo partido fascista baseado na luta contra o socialismo e na “lealdade” à sua liderança.
Ontem, o pacote também foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado após um acordo entre os líderes dos partidos, sinalizando a possibilidade de aprovação rápida no plenário.
Apesar de precisar de maioria simples para ser aprovado, o pacote anticrime recebeu na Câmara 408 votos de um total de 513, com o Partido dos Trabalhadores (PT) e o maoísta Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pressionando seus deputados para garantir apoio ao pacote.
O pseudo-esquerdista Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que reúne grupos pablistas e morenistas como o Novo Partido Anticapitalista (NPA) da França, liberou o voto de sua bancada de deputados, fazendo com que sua principal figura pública, Marcelo Freixo, e outros dois deputados votassem a favor do pacote. Freixo é o principal candidato de oposição ao prefeito chauvinista evangélico do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, na eleição de 2020. Na eleição municipal de 2016, Freixo recebeu 40% dos votos com o apoio do maior conglomerado de mídia do Brasil, o direitista Grupo Globo.
A aprovação do pacote anticrime na Câmara ocorreu apenas quatro dias após o massacre de nove jovens em um baile funk na favela de Paraisópolis, em São Paulo, em uma operação realizada pela assassina Polícia Militar do estado, cujos piores instintos fascistas estão sendo estimulados pela forte guinada direitista da política burguesa brasileira. Pelo menos outros 12 jovens ficaram gravemente feridos depois que a polícia bloqueou todas as saídas dos estreitos becos da favela, onde cerca de 5.000 pessoas estavam reunidas à noite quando policiais começaram a disparar balas de borracha e, de acordo com testemunhos, munição letal. Ainda não está claro se as mortes foram causadas por tiros da polícia ou se os jovens morreram pisoteados pela multidão aterrorizada. Existe ainda a suspeita de que a polícia tenha se vingado da morte de um policial em uma operação próxima ao baile funk.
As implicações do pacote anticrime são vastas. Ele não apenas dobra sentenças de prisão em muitos casos, mas também expande amplamente o que é considerado crime hediondo, que possui uma série de limitações para a progressão de regime e a liberdade condicional. O roubo seguido de “lesão grave” agora se enquadra nessa categoria. O tempo máximo de cumprimento de pena de prisão aumenta de 30 para 40 anos.
O mais significativo, no entanto, é que o pacote anticrime representa um amplo ataque aos direitos democráticos. Ele permite a gravação de conversa entre advogados e seus clientes presos em presídios de segurança máxima e a validação de provas obtidas por policiais disfarçados em casos de tráfico de drogas e armas, inclusive em casos envolvendo venda de pequenas quantidades de drogas. Ele ainda triplica as sentenças por “crimes contra honra” cometidos pela Internet.
O pacote anticrime amplia significativamente a possibilidade do assassinato policial sem enfrentar processo criminal, expandindo a legitima defesa para incluir os critérios altamente subjetivos de “risco de agressão” ou “risco de conflito armado”.
Ele também cria um banco de dados nacional de voz, íris e reconhecimento facial para presos, mesmo aqueles que estejam detidos antes da condenação, o que significa que qualquer desculpa encontrada pela polícia para prender alguém resultará na coleta de dados biométricos. O pacote anticrime também praticamente acaba com a prescrição de pena, suspendendo-a quando houver recursos pendentes em Tribunais Superiores. Finalmente, uma das seções mais ameaçadoras autoriza bancos de dados públicos para incluir informações falsas para encobrir agentes infiltrados na internet.
A aprovação iminente do pacote anticrime faz parte da construção de um estado policial no Brasil, apoiado por todas as frações da classe dominante e seus defensores pequeno-burgueses, de Bolsonaro ao PSOL de Marcelo Freixo. O deputado Rogério Correia (PT) foi um dos primeiros a saudar a aprovação do pacote, dizendo ser nada menos que uma “vitória da civilidade”.
Por sua vez, Freixo reagiu com abjeto triunfalismo direitista, afirmando que o ministro da Justiça, Sérgio Moro, que havia proposto originalmente o pacote anticrime, “sai derrotado hoje dessa Casa porque combater o crime nunca foi privilégio de ninguém”. No domingo passado, foi a vez do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva prestar homenagem às forças fascistas dominantes em Brasília, declarando que “foi importante o comportamento dos setores de esquerda que votaram o projeto principal com mudanças e depois votaram em emendas não permitindo que fosse aprovado como Moro queria”. Lula concluiu dizendo que “o Congresso está tomando uma atitude que está se esperando dele, com todos os seus defeitos”. Em outras palavras, para o PT, a classe trabalhadora brasileira é exatamente o que Bolsonaro afirma ser.
A operação para legitimar o governo Bolsonaro e suas políticas fascistas de repressão não poderia ser mais clara. Tais desenvolvimentos são uma exposição devastadora de todos aqueles que em 2018 chamaram voto no candidato neoliberal do PT, Fernando Haddad, para “deter o fascismo”.
Mas a votação também explode as alegações dessas forças de que a campanha “Lula livre”, obsessivamente realizada desde antes da eleição, era uma luta por direitos democráticos. Lula foi preso em abril de 2018 depois de condenado por corrupção em segunda instância a partir de sentença do então juiz Sergio Moro, que foi recompensado por Bolsonaro com o Ministério da Justiça. O projeto inicial de Moro apresentava uma definição ainda mais ampla do que seriam situações em que a polícia poderia atirar para matar impunemente. Embora essa medida tenha sido alterada pela Câmara, uma das principais questões do PSOL e do PT no pacote foi a inclusão da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. A retirada dessa medida pelos deputados, juntamente com a redação original relacionada à política de atirar para matar, foi o que o PT e seus satélites da pseudo-esquerda queriam dizer com a “derrota de Moro”.
Lula foi inicialmente preso com dois recursos pendentes, um no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outro no Supremo Tribunal Federal (STF). O STF questionou o papel de Moro quando o então juiz interveio ilegalmente no processo de impeachment de 2016 contra a sucessora presidencial de Lula, Dilma Rousseff. No início de novembro, o Supremo Tribunal Federal decidiu que Lula e outros 5.000 presos poderiam ser libertados até que seus recursos fossem esgotados. Antecipando a decisão do STF, Moro havia incluído no pacote anticrime a prisão após condenação em segunda instância.
Por quase 600 dias após a prisão de Lula, sua detenção depois de condenado em segunda instância foi retratada pelo PT e pela chamada esquerda como a questão central na defesa dos direitos democráticos no Brasil. Quando Lula foi finalmente libertado, o PSOL declarou que a decisão era “uma vitória democrática e que combate a sanha punitivista utilizada pela extrema direita para tomar de assalto o poder e que mantém milhares de pessoas presas e entregues ao sistema criminal no Brasil”. A alegação de que seus esforços estavam preocupados com a classe trabalhadora e os pobres brasileiros foi agora exposta.
O PT tem sido amplamente desacreditado, não apenas pelo desastre econômico criado por suas políticas pró-capitalistas, mas também por sua “guerra às drogas”, responsável por quadruplicar a prisão por tráfico de drogas e criar uma massa de 800 mil presos, 40% dos quais nem sequer foram julgados. Diante dessa situação, a responsabilidade de canalizar a oposição dentro da classe trabalhadora por trás do PT e da campanha “Lula livre” recai sobre os defensores da pseudo-esquerda do PT.
A aprovação do pacote anticrime demoliu suas alegações sobre uma frente “democrática” contra Bolsonaro. Além disso, a campanha de extrema direita de Freixo em favor do pacote é complementada pela prostração criminosa, e francamente patética, dos defensores do PT e do PSOL que supostamente se opuseram ao pacote.
A corrente morenista Resistência, do PSOL, limitou-se a lançar uma “Nota crítica sobre a votação do PL Anticrime e a posição da bancada do PSOL”, sustentando que “a decisão da bancada de liberar o voto e dos deputados que votaram favoráveis vai em direção oposta as resoluções de conjuntura votadas pela Executiva e Diretório Nacional deste ano” e que “não é possível que parlamentares da esquerda e da extrema direita comemorem como vitória o mesmo tema. Alguém errou!”. A nota ainda destaca “o possível peso das pressões das eleições 2020 sobre as decisões dos nossos parlamentares”, pois, “com um governo neofascista e com uma base ativa nas classes médias, votar contra as medidas punitivistas significa perder votos”. Ela conclui dizendo inofensivamente que “cálculos eleitorais, jogo parlamentar, não pode estar à frente de uma posição de acordo com nosso programa”.
A mesma linha é seguida por outra organização morenista, o Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT), ligada ao Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS) da Argentina. Uma das lideranças do MRT, Diana Assunção escreveu de maneira sincera no Esquerda Diário: “Como pode ser que deputados do PSOL confluam na mesma política ‘anticrime’ com o partido do deputado que quebrou a placa de Marielle?” – referindo-se à difamação hedionda da vereadora assassinada do PSOL do Rio, Marielle Franco, realizada por apoiadores de Bolsonaro.
De fato, esse voto foi totalmente previsível, e a pergunta “sincera” de Assunção expõe a traição e a falta de seriedade do Esquerda Diário. O PSOL está liderando uma campanha para fortalecer o estado brasileiro e utilizando os suspeitos laços criminais de Bolsonaro com os assassinos de Marielle, que seriam milicianos, como pretexto para isso. Esse é o objetivo de sua obsessão em definir o governo Bolsonaro como um governo de milicianos. O seu objetivo não é denunciar o trabalho criminoso do capitalismo brasileiro por trás das políticas de Bolsonaro, mas impedir essa denúncia. Por nenhuma outra razão, ele ameaçou processar membros do governo Bolsonaro por defenderem a ditadura militar brasileira. Ele está acusando essas autoridades não pelo assalto aos direitos democráticos, mas por “subversão”.
A nota da Resistência admite que a base do PSOL é a pequena burguesia. Mas o fato de que as classes médias altas brasileiras, entrincheiradas em seus condomínios fechados para escapar do desastre social da maior economia mais desigual do mundo, têm interesse eleitoral em políticas de “endurecimento ao crime” está fora de questão. Bolsonaro já admitiu que está buscando dar maiores poderes ao estado para reprimir protestos. Falando por aqueles da classe média alta que temem de maneira reacionária uma explosão social, o PSOL procurou conscientemente fornecer uma cobertura “de esquerda” para esses preparativos. Os trabalhadores devem se preparar para um rompimento irreconciliável com o PT e seus defensores da pseudo-esquerda.