Publicado originalmente em 28 de agosto de 2021
Em um artigo publicado na quarta-feira, o jornalista radicado no Brasil Glenn Greenwald defende políticas para a COVID-19 que ele reconhece que “matarão pessoas”, alegando que o público não está dando ênfase suficiente aos “custos” de salvar vidas.
O artigo aparece tendo como pano de fundo um surto de casos de COVID-19 nos Estados Unidos e na Europa. Governos de todo o mundo deixaram claro que não tomarão medidas para impedir a propagação da doença e que as escolas e empresas permanecerão abertas. O artigo de Greenwald fornece uma racionalização política para esta política.
Em seu artigo, entitulado 'The Bizarre Refusal to Apply Cost-Benefit Analysis to COVID Debates' (A Bizarra Recusa em Aplicar uma Análise de Custo-Benefício aos Debates sobre a COVID), Greenwald afirma:
Em praticamente todos os domínios das políticas públicas, os americanos adotam políticas que eles sabem que matarão pessoas, às vezes um grande número de pessoas. Eles fazem isso não porque são psicopatas, mas porque são racionais: eles avaliam que aquelas mortes que inevitavelmente resultarão das políticas que eles apoiam valem a pena em troca dos benefícios que essas políticas proporcionam. Esta análise racional de custo-benefício, mesmo quando não expressa em termos tão explícitos ou grosseiros, é fundamental para os debates sobre políticas públicas - exceto quando se trata da COVID, onde tem sido bizarramente declarada fora dos limites.
A abordagem defendida por Greenwald foi de fato “declarada fora dos limites' por médicos e cientistas, que vêem a preservação da vida humana como o alicerce de sua obrigação moral para com a sociedade.
Em um poderoso editorial publicado em fevereiro de 2021, o BMJ (antigo British Medical Journal) condenou os apelos para 'equilibrar' a preservação da vida humana com os interesses econômicos.
Quando políticos e especialistas dizem que estão dispostos a permitir dezenas de milhares de mortes prematuras por causa da imunidade da população ou na esperança de apoiar a economia, isso não é uma indiferença premeditada e imprudente para com a vida humana?
Os cientistas e médicos que escreveram o editorial corretamente chamaram tal cálculo sobre o valor da vida humana de 'assassinato social'. Greenwald, ao contrário, identifica precisamente este elemento central da política governamental, não para condená-lo, mas para exigir que ele seja realizado de forma mais impiedosa e agressiva.
Quais são os 'custos' que Greenwald identifica que devem ser contrabalançados com a perda maciça de vidas causadas pela pandemia? Escreve ele:
Assim, esta mentalidade insiste, devemos manter as escolas fechadas para evitar que crianças contraiam COVID, independentemente dos custos horríveis que o fechamento de dezoito meses ou dois anos de escola impõe a todas as crianças.
Sem dúvida, o fechamento de escolas tem um impacto sobre a educação e a socialização das crianças. Com a alocação dos recursos necessários, este impacto pode ser minimizado assegurando-se que todas as crianças tenham acesso a um aprendizado remoto de alta qualidade e que seus pais recebam os recursos necessários para ficar em casa enquanto a produção não essencial permanece fechada. O impacto nas crianças - em termos de sua doença e morte, assim como a doença e morte de seus amigos, pais, professores e da população como um todo - torna o fechamento das escolas um imperativo social e político.
Ao advertir sobre os 'custos horríveis' do fechamento de escolas, Greenwald nunca cita aqueles contra os quais ele argumenta e assim se sente livre para colocar palavras na boca de seu interlocutor imaginário. Na verdade, porém, os cientistas deixaram claro que uma ação agressiva, se implementada sistematicamente, poderia acabar com a pandemia não em 'dois anos', mas em dois meses.
Em uma apresentação ao evento online do WSWS, 'Por uma estratégia global para deter a pandemia e salvar vidas!' a Dra. Malgorzata Gasperowicz apresentou um modelo mostrando que a COVID-19 poderia ser eliminada em apenas dois meses através da combinação da vacinação em massa, o fechamento de escolas públicas e atividades econômicas não essenciais e testagem universal, rastreamento de contatos e isolamento de indivíduos infectados.
Para apoiar sua exigência de sacrificar vidas humanas por razões 'econômicas', Greenwald volta a apresentar uma argumentação usada repetidas vezes por comentaristas políticos de direita. Se realmente quiséssemos salvar vidas, diz ele, deveríamos proibir ou restringir severamente o uso de automóveis.
Mesmo com cintos de segurança e airbags, perde-se um número trágico de anos de vida, dado o número de jovens que morrem ou ficam permanente e gravemente incapacitados devido a acidentes de carro. Estudos realizados ao longo de décadas demonstraram que mesmo pequenas reduções nos limites de velocidade salvam muitas vidas, enquanto reduções radicais - apoiadas por quase ninguém - eliminariam a maioria, se não todas, as mortes causadas por acidentes de carro.
Muito poucas pessoas exigem a proibição do uso de automóveis ou 'reduções radicais' nos limites de velocidade, argumenta Greenwald, mesmo que os acidentes de carro matem um grande número de pessoas. Da mesma forma, ele implica que as pessoas devem parar de defender medidas agressivas de saúde pública para deter a pandemia, mesmo que ela esteja matando um grande número de pessoas.
Em primeiro lugar, em termos de números, a pandemia está na verdade matando muito mais pessoas. Mais de 100 pessoas morrem em acidentes de automóvel todos os dias nos EUA. Em comparação, 1.290 pessoas morreram da COVID-19 na quinta-feira, e mais de 1.000 pessoas morreram todos os dias nesta semana.
Mas não se trata apenas de uma questão de escala. Cada pessoa que fica doente com a COVID-19 torna-se uma placa de Petri humana, dando ao vírus uma nova chance de sofrer uma mutação ainda mais mortifera. Já houve quatro grandes novas cepas, incluindo a atual variante 'Delta' - com os cientistas alertando que é provável que variantes ainda mais perigosas surjam se o vírus continuar a se espalhar. Em outras palavras, além do número de mortos e feridos, os 'custos' de não conter a pandemia crescem constantemente como uma bola de neve.
O próprio Greenwald observou tal diferença no Twitter em 2020, escrevendo: 'Ao contrário dos acidentes de carro ou ataques cardíacos, onde a taxa de mortalidade é estável, o número de mortes aumenta praticamente todos os dias, às vezes exponencialmente, sem um fim à vista'. Isto é perfeitamente correto. A prevenção de infecções da COVID-19 não só mantém os que seriam infectados seguros, mas também impede que a doença de propague, infecte outros e sofra mutações.
Quanto ao exemplo de Greenwald, ações certamente são necessárias e foram tomadas para reduzir as mortes no trânsito.
Em 1965, Ralph Nader publicou Unsafe at Any Speed (Perigoso a Qualquer Velocidade), documentando os esforços das montadoras americanas, incluindo a General Motors, para combater recursos críticos de segurança, como a introdução de cintos de segurança. A publicação do livro levou à aprovação do National Traffic and Motor Vehicle Safety Act (a Lei Nacional de Segurança do Tráfego e Veículos Automotores), e à adoção uma série de recursos padrão de segurança para automóveis, incluindo vidros de segurança, luzes de emergência e volantes mais seguros.
Apenas uma dessas medidas, a exigência de instalar e usar cintos de segurança, salvou um numero estimado de 374.196 vidas entre 1975 e 2017, e as mortes no trânsito por quilômetro percorrido foram reduzidas em mais de cinco vezes. Além disso, foram aprovadas leis que impõem multas severas e até sanções criminais por dirigir sob a influência do álcool, um dos principais contribuintes para os acidentes de trânsito. Outras leis proíbem o uso de telefones enquanto se dirige.
O tipo de 'análise de custo-benefício' invocado por Greenwald tem sido usado há décadas por grandes corporações para obstruir regulamentações de segurança cruciais. 'Os legisladores que se opõem às regulamentações por razões ideológicas (ou financeiras) têm usado há muito tempo a análise de custo-benefício para obstruir proteções vigorosas de saúde pública e segurança', observou o Public Citizen, o grupo fundado por Nader, em 2013.
No início deste mês, o Public Citizen respondeu aos argumentos da direita contra as medidas de saúde pública para deter a pandemia, observando que 'a maior fraqueza da análise de custo-benefício é que ela não pode explicar de forma consistente valores inestimáveis: vida humana, saúde, natureza, liberdade, justiça, igualdade, ou mesmo paz de espírito... Aos olhos da análise de custo-benefício, se você não pode atribuir a algo um valor em dólares, aquilo não existe'.
A 'análise de custo-benefício' pode ser apropriada para determinar certas decisões empresariais - como os recursos serão distribuídos mais efetivamente na construção de um edifício, por exemplo, ou como a construção de uma fábrica em locais diferentes impactará os custos de transporte e de recursos.
É totalmente inapropriado para determinar a política em resposta à pandemia, porque não se pode dar um valor numérico à vida humana. A demanda por uma análise de 'custo-benefício' das medidas de política pública incorpora uma série de suposições: que nada pode ser feito para mitigar o impacto dessas medidas, que a estrutura existente da sociedade de classe permanecerá intocada e, em última instância, que um preço pode ser colocado na vida humana.
Enquanto se cobrem com referências aos 'custos' para as crianças devido ao fechamento temporário das escolas, a verdadeira preocupação daqueles dentro da classe dominante que promovem uma análise de 'custo-benefício' é o custo para os lucros das corporações e a riqueza da classe dominante.
Um elemento significativo sobre o artigo de Greenwald é o fato de que, apenas dois dias após seu aparecimento, dois funcionários do governo britânico disseram à i notícias que o governo do primeiro-ministro Boris Johnson 'considerará uma análise de custo-benefício tanto para salvar vidas quanto para o efeito das mortes na economia britânica'.
O jornal escreveu:
Uma análise de custo-benefício estabelecerá o nível aceitável de mortes por Covid-19 antes que restrições sejam reintroduzidas em cerca de 1.000 mortes por semana, dois consultores do governo disseram à i. ... Acredita-se que a análise de custo-benefício do governo sobre as medidas contra a Covid tenha estabelecido não apenas o nível aceitável de custo para salvar a vida de um paciente de Covid em até £30.000, mas também o quanto cada vida perdida custa à economia britânica.
Um dos funcionários até se referiu aos 'limites de velocidade' como um exemplo de medidas que devem ser ponderadas em relação aos custos de implementação das mesmas.
O momento da publicação de seu artigo levanta uma questão: Greenwald está servindo como um veículo para legitimar as políticas do governo britânico? Se não, ele só serve para mostrar como sua orientação política segue diretamente as seções mais impiedosas do establishment político. A implementação de uma abordagem de 'custo-benefício' está inteiramente de acordo com a proclamação anterior do primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson: 'nada de porra de lockdown – que os corpos se amontoem aos milhares'.
Há questões históricas perturbadoras que são levantadas pelo tipo de argumento que Greenwald está defendendo. Ele afirma que 'a análise racional de custo-benefício ... é a base para os debates de política pública'. Na verdade, não é. A aplicação desse tipo de análise à medicina e à saúde pública é informada pelo legado da eugenia e do assassinato pelo Partido Nazista Alemão de dezenas de milhares de pessoas com doenças crônicas, que os nazistas classificavam como 'impróprias para viver'.
No livro-texto de bioética From Chance to Choice: Genetics and Justice (Do Acaso à Escolha: Genética e Justiça), os professores Allen Buchman, Dan Brock, Norman Daniels e Daniel Wikler observam o legado da 'análise de custo-benefício' no movimento eugênico americano.
Ele cita o 'Catecismo Eugênico da Sociedade Americana de Eugenia' de 1926, que argumenta: 'Estima-se que o estado de Nova York, até 1916, tenha gasto mais de US$ 2.000.000 em descendentes' de uma família - os Jukes – que se alegava ser geneticamente deficiente. 'Quanto teria custado esterilizar o par Jukes original?' perguntou a sociedade: 'Menos de 150 dólares'.
O livro continua: 'Exemplos semelhantes abundaram nos livros escolares de aritmética de crianças alemãs nos anos 30, estendendo-se ao custo de manter vivas as pessoas internadas e deficientes; não muito tempo depois, dezenas de milhares perderam suas vidas'.
'Vocês carregam o fardo', exclamava um cartaz de propaganda nazista mostrando um trabalhador carregando duas pessoas deficientes em seus ombros. 'Uma pessoa com uma doença hereditária custa em média 50.000 marcos até atingir a idade de 60 anos'.
Sob o domínio nazista, dezenas de milhares de pessoas deficientes foram assassinadas em segredo, em um programa cujo horror e influência corruptora foi retratado na série de televisão alemã Charité at War .
'Como o juramento de Hipócrates se concilia com o juramento ao Führer?' pergunta um dos personagens ao saber do envolvimento de seus colegas no assassinato de crianças deficientes, referindo-se ao juramento feito por médicos e enfermeiras de 'abster-se de todo mal e dano intencional'.
Aonde os argumentos de Greenwald levam? Por que parar na rejeição de medidas para salvar vidas na pandemia da COVID-19? Por que não aplicar esta 'análise de custo-benefício' aos cuidados médicos e ao bem-estar social em geral? Por que os trabalhadores devem receber assistência médica depois da idade da aposentadoria? A sociedade não se 'beneficiaria' se lhes fosse permitido morrer de uma morte 'natural'?
Por que gastar tanto dinheiro em pesquisa de câncer e doenças cardíacas? Afinal de contas, são doenças que afetam predominantemente os idosos. Ou até mesmo por que realizar operações que prolongam a vida em pessoas com mais de 65 anos? E as crianças com distúrbios de desenvolvimento? Se o valor inerente da vida humana for ignorado, o cuidado com os deficientes 'custará' mais à sociedade do que “beneficiará'.
Em meio a uma crise crescente produzida pela pandemia, a sociedade se polarizou profundamente. Greenwald fala por um setor da classe média-alta abastada que está alinhando seu futuro à oligarquia financeira, abraçando suas políticas homicidas e oferecendo álibis e justificativas para a extrema direita.
Mas há outro polo mais poderoso na sociedade. Em todo o mundo, a classe trabalhadora está entrando em luta em defesa de seus próprios interesses sociais, sendo crucial entre eles a erradicação da COVID-19. Amplos setores de médicos, cientistas e outros profissionais serão profundamente influenciados e fortalecidos por este movimento renovado da classe trabalhadora.