Português

A ascensão do parasitismo financeiro e o surgimento do fascismo

Em seu artigo “O golpe de Trump e a ascensão do fascismo: aonde vão os Estados Unidos?”, David North traçou os processos históricos que levaram aos eventos de 6 de janeiro em Washington.

Ele explicou que, embora os movimentos de extrema direita e de tendência fascista tivessem sido sempre presentes no corpo político americano, essas forças políticas e sociais malignas podiam ser contidas enquanto os EUA eram uma potência econômica em ascensão.

A situação atual é essencialmente diferente. Os Estados Unidos não são mais uma potência em ascensão. Nos últimos 50 anos, passou por um declínio histórico inexorável que viu duas crises financeiras existenciais no espaço de 12 anos – o colapso do sistema bancário de 2008 e o desastre potencialmente ainda maior de meados de março de 2020, quando o impacto inicial da pandemia de COVID-19 resultou no congelamento de todos os mercados financeiros nos EUA e em todo o mundo.

Operadores trabalhando na Bolsa de Valores de Nova York (Richard Drew/AP Photo)

Em seu artigo, North insistiu que a crise e o significado dela só poderiam ser compreendidos se colocados em seu contexto histórico e internacional. Dessa forma, apontou que as origens econômicas da atual crise remontam à decisão do presidente Richard Nixon, em 15 de agosto de 1971, de remover o lastro em ouro do dólar americano, derrubando efetivamente o Acordo de Bretton Woods de 1944 que havia fundamentado a economia capitalista global do pós-guerra.

O pilar desse acordo, que havia fornecido a base necessária para a reestabilização do capitalismo mundial após os 30 anos da carnificina iniciada pela eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914, foi o estabelecimento do dólar como a moeda de reserva internacional, conversível em ouro à taxa de US$ 35 por onça.

Apenas um quarto de século após esse compromisso ter sido firmado, ele foi desfeito em função do declínio da posição dos Estados Unidos na economia mundial. Com o aumento dos déficits comerciais e da balança de pagamentos dos EUA, honrar o compromisso de resgatar dólares com ouro significaria a bancarrota nacional.

“Em retrospectiva histórica”, escreveu North, “esta ação marcou uma virada não apenas na posição econômica global dos Estados Unidos, mas também no destino da democracia americana”.

Este ponto crucial na identificação das origens econômicas da atual crise política pode ser definido através de um exame da trajetória do capitalismo americano nos últimos 50 anos, e particularmente dos desenvolvimentos no sistema monetário e financeiro.

Essa história poderia ser resumida como a ascensão contínua do capital financeiro, a forma mais voraz e predatória do capital como um todo, e seu domínio sobre toda a economia.

Esse processo, como vamos demonstrar, forma a base e agora forneceu o impulso econômico para as mudanças na superestrutura política, que viu emergir o perigo real e presente das formas fascistas de governo.

E não se limitou aos EUA. Os desenvolvimentos nos Estados Unidos são apenas a expressão mais violenta, pelo menos até agora, do que tem sido um processo global que se manifesta em todos os países. Mas, como diz o ditado, o peixe começa a apodrecer na cabeça.

O choque de agosto de 1971 foi a expressão inicial de uma grande virada no desenvolvimento da economia capitalista global – o fim do boom econômico do pós-guerra.

Em 1974-75, após uma queda significativa na taxa de lucro nos EUA e em todo o mundo desde o final dos anos 1960, o capitalismo mundial entrou na mais profunda recessão, até então, desde os anos 1930.

Foi muito diferente das recessões dos anos 1950 e 1960. Após sua passagem, essas recessões deram lugar a uma nova ascensão no ciclo econômico e um crescimento econômico maior do que o registrado anteriormente.

A recessão de 1974-75 passou, mas não foi substituída por nada que se assemelhasse às recessões anteriores. Em vez disso, sob condições de crescimento reduzido, deu lugar ao que ficou conhecido como “estagflação” – a combinação de aumento de preços com alto desemprego. As chamadas medidas keynesianas, baseadas em incentivos do governo, não só se mostraram ineficazes para trazer um renascimento, mas pioraram a situação.

Setores-chave da classe dominante nos EUA e internacionalmente compreenderam, pelo menos em algum nível, que não havia como sair do atoleiro com meias-medidas baseadas na estrutura industrial do boom do pós-guerra. Para aumentar os lucros, eles haviam tentado aumentar o nível de exploração dentro da velha ordem, mas isto só provocou uma série de lutas combativas de setores poderosos da classe trabalhadora – sendo um dos exemplos mais ilustrativos a greve dos mineiros na Grã-Bretanha em 1973-74, que derrubou o governo tory de Heath.

Baseando-se nesta experiência, eles reconheceram que, para deter a queda da taxa de lucro, eram necessários nada menos que a reestruturação da economia capitalista e o desenvolvimento de um novo regime de produção.

Isso implicava o fechamento de setores menos lucrativos da indústria, com a eliminação da grande concentração de trabalhadores que empregavam; a introdução de novas tecnologias que reduziam os postos de trabalho nos demais setores; e a terceirização da produção em nível internacional para aproveitar fontes de mão de obra muito mais baratas.

Este programa foi liderado internacionalmente pelos governos Thatcher e Reagan. A principal arma econômica usada para impor a agenda da reestruturação foi empunhada pelo Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA) sob a presidência de Paul Volcker. Nomeado por Jimmy Carter em 1979, ele elevou as taxas de juros a níveis sem precedentes na história, chegando a alcançar 20% em determinado momento.

Conduzidas sob a bandeira da luta contra a inflação, o alvo central destas medidas era a classe trabalhadora. Uma grande virada na luta de classes veio em 1981, quando Reagan levou a cabo a demissão massiva dos controladores de tráfego aéreo e prendeu os líderes de seu sindicato, PATCO.

Volcker elogiaria Reagan mais tarde, por sua forma de quebrar a greve, declarando que a derrota dos trabalhadores da PATCO foi o fator mais importante para controlar a inflação. O resultado da PATCO, disse, foi decisivo por seu “efeito psicológico sobre a força da posição negociadora do sindicato em outras questões – quaisquer que fossem as questões”.

Um membro do Comitê Federal de Mercado Aberto do Fed colocou a questão ainda mais diretamente, dizendo em uma reunião em fevereiro de 1981 que “a inflação não seria derrotada com segurança... até que todos esses trabalhadores e seus sindicatos concordassem em aceitar menos. Se não se impressionavam com as palavras, talvez fossem convencidos com a eliminação de vários milhões de empregos”.

Mas estas medidas só poderiam avançar com a colaboração direta da burocracia sindical, que se recusou a levantar um dedo em defesa dos trabalhadores da PATCO, estabelecendo o padrão para a traição de uma série de grandes lutas sindicais que se seguiriam no resto da década.

A destruição de vastos setores da indústria americana, e a consequente guerra contra a classe trabalhadora, foi um componente de uma ampla reorganização da economia americana – sua transformação em centro da acumulação parasitária de lucros através da manipulação financeira e da especulação.

Começou com a compra de empresas por aquisições hostis, financiadas por junk bonds, e que depois eram esvaziadas e suas partes componentes vendidas. A acumulação de lucro não se dava através da produção, mas através de atividades parasitárias financiadas pela dívida – o início de um processo que atingiu atualmente níveis estratosféricos.

Em seu artigo, North se refere ao crescimento de atividades criminosas na esfera política, exemplificado pelo ato de Reagan de colocar uma coroa de flores no cemitério da cidade alemã de Bitburg, em 1985, onde membros da Waffen-SS foram enterrados, seguido do escândalo Irã-Contras um ano depois.

Nesse caso, o governo Reagan, violando uma lei aprovada pelo Congresso, financiou esquadrões da morte na Nicarágua para derrubar o governo de esquerda sandinista. As audiências no Congresso revelaram que o coronel Oliver North, enquanto dirigia as operações assassinas na Nicarágua, também estava envolvido em planos para a detenção de 100.000 estadunidenses em caso de emergência nacional.

Houve uma evolução paralela na estrutura financeira subjacente do capitalismo americano, à medida que métodos considerados ilegais no passado se tornavam a norma. Em 1982, o Congresso aprovou leis permitindo que as empresas comprassem de volta suas próprias ações a fim de aumentar seu preço – uma prática que se tornou hoje um componente importante das operações de Wall Street. Anteriormente, esta atividade era proibida pela Comissão de Segurança e Câmbio dos EUA, considerada como manipulação de mercado.

Uma nova categoria de operadores financeiros surgiu para organizar a especulação financeira, especialmente por meio da emissão de títulos com menor grau de investimento, ou junk bonds, para financiar aquisições hostis.

Um dos mais importantes desses operadores, Michael Milken, acabou sendo preso. Mas os métodos que ele desenvolveu rapidamente se tornaram um procedimento operacional padrão em Wall Street – fato reconhecido pelo presidente Trump em fevereiro de 2020, quando concedeu perdão a Milken sob os aplausos do capital financeiro. Elogiando essa decisão, o Wall Street Journal declarou: “O sr. Milken foi um dos grandes inovadores financeiros do século XX. Nos anos 1980, ele inventou o mercado de títulos de alto rendimento que hoje é um instrumento financeiro básico”.

Entretanto, a orgia da especulação desencadeada nos anos 1980, possibilitada por levas sucessivas de desregulamentação, que ampliaram o escopo das atividades do capital financeiro, não prosseguiu tranquilamente. Ela estourou em uma grande crise que expôs a crescente degradação e decadência no próprio centro do capitalismo americano.

Em outubro de 1987, Wall Street experimentou sua maior queda em um dia na história – superando o crash de outubro de 1929 – quando o Dow afundou em mais de 22%. Ele foi trazido de volta desta experiência de quase-morte, que durou algumas semanas, apenas com a intervenção do Fed. Não foram ações meramente pontuais. Elas significaram uma transformação qualitativa em seu papel no sistema financeiro dos EUA.

No período pós-guerra, o papel do Fed foi resumido por seu presidente em 1955, William McChesney Martin: “No campo da política monetária e de crédito, uma ação preventiva para evitar os excessos inflacionários tem que ter alguns efeitos onerosos... Aqueles cuja tarefa é fazer essa política não esperam ser aplaudidos. O Federal Reserve... está na posição da dama de companhia que ordena a retirada da taça do ponche justamente quando a festa esquenta”.

No outono de 1987, o recém-nomeado presidente do Fed, Alan Greenspan, se pronunciou sobre o crash do mercado de ações com uma única frase. “O Federal Reserve”, disse, “de acordo com suas responsabilidades como banco central da nação, afirmou hoje sua disponibilidade para servir como fonte de liquidez para apoiar o sistema econômico e financeiro”.

Isto significava abrir as torneiras de dinheiro do Fed para as casas financeiras. A escala de suas ações, embora pequena diante das intervenções subsequentes, foi extensa para a época. No total, o banco central forneceu US$ 17 bilhões ao sistema bancário, uma quantia equivalente a mais de 25% das reservas bancárias e equivalente a 7% da oferta monetária nacional.

Era o início de um novo programa, como Greenspan deixaria claro. A tarefa do Fed não era agir contra bolhas de ativos inflacionárias e esvaziá-las antes que se tornassem perigosas, mas permitir que elas se desenvolvessem e, quando estourassem, bombear dinheiro para limpar a desordem e evitar a falência dos bancos e casas financeiras envolvidas na especulação que gerou as bolhas.

Isso se baseava no entendimento de que esses métodos passaram a ser centrais para o funcionamento da economia americana. Em vez de retirar a taça de ponche, Greenspan deixou claro que o papel do Fed era adicionar mais álcool dentro dela.

A década de 1990 foi marcada por uma série de crises: a crise mexicana do peso, a crise asiática de 1997-98, o colapso do rublo russo. Estes desenvolvimentos levaram ao colapso do fundo de cobertura Long-Term Capital Management, que foi resgatado pelo Fed de Nova York para evitar que o seu desaparecimento provocasse uma crise em todo o sistema financeiro.

O desenvolvimento da internet foi acompanhado do crescimento e colapso da bolha dot.com em 2000-2001. Em 2001, a empresa de energia Enron, cujos lucros registrados resultavam de uma “contabilidade criativa” assinada por uma grande empresa de contabilidade, entrou em colapso quando se revelou que seus lucros eram completamente fictícios.

Estas crises não foram uma série de acidentes, mas a expressão de um mal-estar cada vez mais profundo, decorrente da acumulação incessante de lucros por meio de atividades financeiras completamente dissociadas da economia real subjacente e da produção de valor real.

Em todas as situações, a reação do Fed foi a mesma. Baixou as taxas de juros e criou as condições para a próxima bolha. Ao longo da década de 1990, sob o governo Clinton, os últimos vestígios dos mecanismos regulatórios que haviam sido criados anteriormente foram removidos, culminando na revogação da Lei Glass-Steagall dos anos 1930, que separava as atividades bancárias e de investimento dos principais bancos.

Em 1999, quando os derivativos começaram a assumir maior importância como meio de especulação, o secretário do Tesouro de Clinton, Lawrence Summers, opôs-se veementemente a submetê-los à regulamentação.

A crise de 2008 marcou uma virada qualitativa na crise histórica do capitalismo americano e global, aqui não se tratava apenas das atividades de uma empresa individual como a Enron ou de um fundo de cobertura, como no caso do Long Term Capital Management, que havia entrado em colapso.

A crise que começou no mercado imobiliário subprime de US$ 50 bilhões, uma parte relativamente pequena do mercado financeiro, generalizou-se porque os métodos empregados ali se estendiam a todo o sistema. Após a falência do banco de investimentos Lehman Brothers, o governo e o Fed tiveram que resgatar a gigante de seguros AIG para evitar um colapso total do sistema financeiro.

A intervenção maciça dos governos Bush e Obama levou o Fed a resgatar empresas e despejar trilhões de dólares no sistema financeiro. O balanço do banco central dos EUA expandiu-se de cerca de US$ 800 bilhões para mais de US$ 4 trilhões, como resultado da compra contínua de ativos financeiros sob seu programa de flexibilização quantitativa. Isto significava que o chamado “livre mercado” não poderia sobreviver por um único dia sem o apoio do Estado.

Essas intervenções, aliadas à reestruturação do mercado de trabalho sob Obama, incluindo a ampliação do sistema salarial de dois níveis e o desmantelamento dos contratos de trabalho regulares, aceleraram um processo que havia começado décadas antes – o desvio da riqueza da sociedade para as posições mais altas na escala de rendimentos, criando os maiores níveis de desigualdade social já vistos na história.

A intervenção do Fed através da compra de títulos do governo e da redução das taxas de juros para mínimos históricos, fornecendo essencialmente dinheiro grátis aos oligarcas financeiros, foram anunciadas como medidas temporárias, a serem retiradas quando as condições voltassem ao normal.

Esse dia nunca chegou. O novo normal era que o apoio contínuo do Fed era essencial para o dia a dia das operações dos mercados financeiros. Qualquer esforço do banco central para reduzir suas medidas foi enfrentado com uma reação violenta em Wall Street, acarretando um recuo imediato. Esse foi o caso em 2018, quando o Fed realizou quatro aumentos das taxas de juros, cada um de 0,25 pontos percentuais, e indicou que reduziria sua carteira de ativos financeiros a uma taxa de US$ 50 bilhões por mês. Os mercados afundaram e o presidente do Fed, Jerome Powell, anunciou que suspenderia novos aumentos nas taxas de juros.

A crise de 2008 foi o resultado do crescimento do parasitismo financeiro nas três décadas anteriores e nos anos seguintes. Isto não surgiu de uma mudança na mentalidade das classes dirigentes que pudesse de alguma forma ser revertida se se adotasse outra política. Antes, surgiu de contradições objetivas profundamente arraigadas no sistema de lucro capitalista, que vieram à tona com o fim do boom do pós-guerra.

Ao longo de todos os altos e baixos do ciclo econômico que se seguiram ao final do boom, as taxas de lucro nas esferas da produção industrial nunca voltaram aos níveis que experimentaram nos anos 1950 e 1960. Esta foi a força motriz por trás do giro cada vez maior aos métodos financeiros de acumulação de lucros.

Portanto, a resposta à crise de 2008 foi elevar o acúmulo parasitário de lucro a alturas cada vez maiores através do fornecimento de dinheiro essencialmente gratuito à oligarquia financeira, enquanto lançava programas de austeridade contra a classe trabalhadora com base no fato de que “não havia dinheiro”.

Quando a pandemia irrompeu, ela expôs as consequências sociais devastadoras da institucionalização do acúmulo de riqueza no topo da sociedade às custas da massa da população. Nenhuma medida eficaz baseada na ciência, que teria implicado o fechamento de locais de trabalho não essenciais e o pagamento de auxílio aos trabalhadores afetados, poderia ser implementada para combater a pandemia, pois isso teria desencadeado uma crise em Wall Street.

A razão está na natureza dos ativos financeiros que agora assumiram tais proporções gigantescas. O capital financeiro é essencialmente fictício. Ou seja, ele não incorpora valor em si mesmo, mas, em última análise, é uma reivindicação do valor excedente extraído da classe trabalhadora no processo de produção capitalista.

Quando uma empresa industrial lucra com sua atividade, cria-se valor real e gera-se mais-valia a partir da exploração da classe trabalhadora no processo de produção. Entretanto, quando as ações são negociadas em Wall Street com lucro, quando os lucros são feitos em transações de moedas, como os US$ 2 bilhões arrecadados por George Soros ao apostar contra a libra esterlina em 1992, ou quando um enriquecimento brutal é obtido a partir de negócios derivativos, para citar apenas alguns exemplos, não se cria nem um único átomo de novo valor.

Essas relações econômicas fundamentais são a base e a força motriz de algumas das mudanças mais significativas na fisionomia do capitalismo americano nos últimos 40 anos.

A redução contínua dos salários reais, apesar dos grandes aumentos na produtividade do trabalho, associada à intensificação da exploração, tornou-se uma característica indispensável da economia capitalista, já que o vampiro do capital fictício exige a extração cada vez maior de mais-valia para sustentá-lo.

Da mesma forma, a destruição dos serviços sociais – os ataques à educação e o pesadelo que é o sistema de saúde dos Estados Unidos – serve ao mesmo fim, pois, em última análise, todos os gastos sociais representam uma dedução da massa de mais-valia disponível para Wall Street.

O aumento do capital fictício e o consequente desenvolvimento do parasitismo como o modo dominante de acumulação de lucros apontam para outro desenvolvimento significativo. Nos últimos 30 anos, o imperialismo americano lançou guerras contínuas – guerras de pilhagem destinadas a tentar aumentar o fluxo de riqueza para Wall Street e neutralizar o declínio econômico americano por meios militares.

Ao mesmo tempo, tanto sob os governos democratas quanto sob os republicanos, os EUA têm empreendido cada vez mais a guerra econômica contra seus rivais – não apenas contra a China, mas também cada vez mais contra a Europa – para conseguir o mesmo objetivo. Chegou ao ponto em que o dólar, a principal moeda de reserva mundial, se tornou “armamento”. Empresas e Estados considerados contrários aos objetivos dos EUA – comercializando com o Irã, por exemplo – podem ser excluídos dos principais mercados financeiros.

O início da pandemia não só revelou as consequências sociais devastadoras do parasitismo financeiro, mas também deixou claro como as condições para uma nova crise financeira, que até ultrapassaria a escala de 2008, foram criadas nos 12 anos seguintes.

Este é o significado da crise de meados de março de 2020 em Wall Street, que se estendeu a todo o sistema financeiro global, quando os mercados congelaram de forma generalizada.

A extensão e a intensidade deste ataque cardíaco financeiro foram revelados no fato de que ele se concentrou no mercado de títulos do Tesouro dos EUA, de US$ 20 trilhões – a base do sistema financeiro americano e global. Em períodos de grande turbulência no mercado, o mercado de títulos do Tesouro atua como uma espécie de porto seguro financeiro, com fluxo de dinheiro para a compra de títulos do governo americano. Nesta ocasião, no entanto, houve uma liquidação do mercado de títulos no que foi descrito como uma “corrida por dinheiro”, que ameaçou derrubar todo o sistema financeiro.

As circunstâncias desta crise revelam a importância da luta de classes para o funcionamento do sistema financeiro e porque a classe política e seus agentes na burocracia sindical fazem todo o possível para suprimi-la.

Em março, quando os efeitos da pandemia e os enormes perigos que ela representava se tornaram aparentes, ocorreram paralisações e greves de importantes setores da classe trabalhadora, particularmente na indústria automobilística, exigindo que fossem tomadas medidas eficazes para combatê-la. Isso provocou arrepios na oligarquia financeira, petrificada com a perspectiva de que este movimento crescesse e se desenvolvesse.

O movimento inicial foi bloqueado, sobretudo pela ação dos sindicatos. Mas o medo não desapareceu, como exemplificado pela resposta preocupada à greve dos trabalhadores do mercado de produtos de Hunts Point em Nova York, impulsionada pela preocupação de que a greve pudesse ser o catalisador de uma explosão da raiva social reprimida em setores mais amplos da classe trabalhadora.

A escala da intervenção do Fed em meados de março revelou a extensão e a profundidade da crise financeira. Praticamente da noite para o dia, ele interveio para agir como fiador de todas as áreas do sistema financeiro, comprometendo-se a aumentar suas compras de títulos, garantindo o mercado de papel comercial, o mercado de títulos municipais, empréstimo estudantil e dívida de cartão de crédito e, pela primeira vez na história, comprando dívida corporativa.

Esta intervenção, combinada ao fornecimento de centenas de bilhões de dólares para grandes corporações sob a Lei CARES, fez com que o balanço do Fed aumentasse de cerca de US$ 4 trilhões para mais de US$ 7 trilhões. O Fed se comprometeu a manter as taxas de juros em praticamente zero por um futuro indeterminado, e está comprando títulos do Tesouro e títulos hipotecários à taxa de US$ 120 bilhões por mês – ou seja, mais de US$ 1,4 trilhão por ano.

Estas medidas, indo muito além do que foi feito depois de 2008, significam que o Estado capitalista se tornou o fiador da oligarquia financeira.

A ação do Fed e do governo impulsionou Wall Street a subir 75% desde seu ponto mais baixo em meados de março, transferindo centenas de bilhões de dólares para os cofres da oligarquia financeira.

O castelo de cartas financeiro está se elevando a alturas cada vez maiores, mesmo com suas bases ficando cada vez mais instáveis, em meio a alertas de dentro da própria Wall Street de que a situação é inerentemente instável e insustentável.

É destes processos que emanam os impulsos econômicos objetivos para grandes mudanças na superestrutura política, incluindo a ascensão do fascismo como uma força significativa e altamente perigosa.

Em seus pronunciamentos sobre os acontecimentos de 6 de janeiro, as diversas tendências pseudoesquerdistas nos EUA e no mundo procuraram anestesiar a classe trabalhadora quanto ao seu significado. Sua resposta universal, diante de uma montanha crescente de evidências, é que o ataque ao Capitólio dos EUA não foi uma tentativa de golpe fascista. A democracia burguesa ainda goza de apoio em setores-chave do Estado e a invasão do Capitólio não passou de uma peça de teatro, motivada por um presidente demente, mas sem apoio em setores decisivos da burguesia e seu aparato estatal, afirmam.

Acima de tudo, eles argumentam que não há processos econômicos fundamentais que exijam o desenvolvimento de um movimento fascista para impor os ditames da burguesia. As classes dirigentes continuam a ganhar dinheiro como água e não há oposição social significativa que elas precisem combater com as forças fascistas.

Essas perigosas ficções políticas, que revelam de forma tão clara a base de classe das tendências pseudoesquerdistas como agências da burguesia, são expostas através de um exame das origens das forças fascistas que se reuniram em Washington.

Elas cresceram e se desenvolveram em uma campanha contra os lockdowns para enfrentar a pandemia da COVID-19. A conspiração fascista para capturar a governadora de Michigan, Gretchen Whitmer, levá-la a julgamento por traição e executá-la, foi motivada pelos fechamentos limitados que ela impôs no estado.

Quando essas forças fizeram manifestações, inclusive com a exibição de armas, para exigir a abertura da economia, elas receberam cobertura significativa na mídia. Isto porque suas exigências estavam de acordo com as de setores poderosos da classe dominante. Elas foram resumidas no pronunciamento do colunista do New York Times Thomas Friedman de que “a cura não pode ser pior que a doença”, o que se tornou a bandeira sob a qual Trump, apoiado em grande medida pelos democratas, prosseguiu a política assassina de “imunidade de rebanho”.

Nada poderia impedir o fluxo de mais-valia. Wall Street começou literalmente a se alimentar da morte.

Essa política, dirigida por forças fascistas, foi a expressão direta e imediata dos interesses mais básicos da oligarquia financeira. Eles podem não ter gostado dos métodos dos fascistas, mas concordaram com seus objetivos.

Uma vez que sua própria posição foi assegurada pelas ações da administração Trump e do Fed, todas apoiadas pelos democratas, as elites financeiras exigiram um retorno ao trabalho, reconhecendo que qualquer medida eficaz para lidar com a pandemia traria uma crise em Wall Street, como a experiência de quase-morte em meados de março havia revelado.

Qualquer afirmação de que a classe dominante como um todo e a oligarquia financeira dominante não têm necessidade de bandos fascistas, muito menos de um golpe, porque continuam a ganhar dinheiro, ignora tanto as lições da história como as contradições explosivas dentro do próprio coração do capitalismo americano e de seu sistema financeiro.

A questão fundamental é que a acumulação de vastas riquezas no topo e o aumento da desigualdade social para níveis sem precedentes na história pressagiam a erupção de lutas de classe e sociais massivas, que, por sua própria natureza, assumirão muito rapidamente uma forma política. Um de seus efeitos imediatos será o de produzir uma crise nos mercados financeiros, cuja ascensão foi possível, entre outras coisas, pela supressão da luta de classes pelos aparatos sindicais durante as últimas três décadas.

Neste contexto, os pronunciamentos de Trump contra os perigos do marxismo e suas contínuas denúncias do socialismo enquanto ele tentava construir seu movimento de tendência fascista não devem ser descartados como delírios de um indivíduo.

Eles são o reconhecimento por parte de um setor da elite financeira, da qual Trump emergiu, dos perigos que enfrentam – que em condições de agravamento das condições econômicas para a massa da população e os vastos problemas enfrentados pelos jovens, há um enorme acúmulo de raiva social e uma mudança para a esquerda.

Não é necessário apontar para Trump, que procurou conduzir esta raiva para a direita, para identificar este fenômeno. Todos os estudos sérios sobre a situação econômica atual nos EUA e no mundo apontam para a aceleração da desigualdade social e os perigos que ela representa para a classe dominante capitalista.

Por exemplo, a última edição do Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial, organizador da reunião anual de Davos das elites internacionais, adverte que muitos jovens “estão ingressando na força de trabalho na era do gelo do emprego”. A desilusão dos jovens se tornará uma “ameaça crucial ao mundo a curto prazo”, pois a geração atual “perde a fé nas instituições econômicas e políticas de hoje”.

Ao examinar a conexão entre a ascensão do parasitismo financeiro a níveis realmente estratosféricos e o surgimento de forças fascistas, é necessário distinguir o fascismo de outras formas autoritárias de governo. A burguesia prefere usar as formas existentes de governo capitalista para impor suas exigências e ditames. Mas, sob certas condições, precisa de outros mecanismos.

Como Leon Trotsky apontou, a burguesia não está, de forma alguma, apaixonada pelo fascismo. Ela considera o método fascista “tanto quanto um homem com uma mandíbula inchada não gosta que lhe arranquem os dentes”. Mas sob certas condições, como essa que agora se desenvolve nos EUA e internacionalmente, a grande burguesia precisa do dentista fascista.

Um movimento fascista, que se desenvolve sob condições de desintegração econômica e social, tenta mobilizar em uma força política setores desprovidos da pequena burguesia, pequenos proprietários, comerciantes individuais e setores da classe trabalhadora, empobrecidos e desorientados por causa das traições de décadas da burocracia sindical.

Devido à sua base social, sua ideologia geralmente tem um tom superficial de “esquerda”. Afirma combater o “deep state”, a mídia corporativa corrupta, o establishment político, às vezes até os monopólios gigantescos que oprimem o pequeno homem e a pequena mulher. Fazendo isso, tira proveito de queixas sociais reais.

Mas em todos os lugares e sempre procurando transformá-los em uma direção reacionária, servindo aos interesses da classe dominante contra a classe trabalhadora. Essa conexão é exemplificada por Trump, que, ao mesmo tempo em que critica o establishment e as elites e afirma lutar pelo “povo esquecido”, exalta a ascensão de Wall Street e exige que ela seja impulsionada ainda mais.

O fascismo se alimenta da angústia social e do desespero produzido pelo capitalismo e pelas operações de seu sistema financeiro, em condições em que não há base para qualquer reforma significativa dentro da ordem econômica existente. Portanto, ele só pode ser neutralizado quando a classe trabalhadora avança e luta por seu próprio programa independente para a reorganização da economia e da sociedade.

O fascismo não pode ser minado por apelos às camadas desorientadas da população para que respeitem a ordem existente, uma vez que essa mesma ordem é responsável por sua situação e as levou a buscar maneiras desesperadas de superá-la.

Façamos um balanço da situação atual. A tentativa de golpe fascista de Trump gozou de profundo apoio entre seções consideráveis do Partido Republicano, com o qual Biden agora clama por unidade.

Setores do aparato estatal o apoiaram ativamente, algumas abertamente, mas muitas outras o fizeram dissimuladamente, as quais continuam a servir sob a administração de Biden.

A base social e econômica do movimento fascista de Trump nas camadas empobrecidas da população, muitas delas em áreas rurais, não vai desaparecer com a mudança na presidência. Ela continuará a crescer à medida que a crise do capitalismo americano se aprofundar. Não há nenhum New Deal a ser implementado e Biden serve aos oligarcas vorazes de Wall Street assim como Trump o fez.

O atual e real perigo do fascismo, seja sob a liderança de Trump ou de qualquer outro, permanecerá até que a classe trabalhadora avance e lute por seu próprio programa independente para a reconstrução da sociedade. Tal programa deve começar enfrentando de frente a fonte do parasitismo financeiro que desempenhou um papel tão crucial na criação do terreno fértil para o fascismo.

Isto significa que no centro do programa defendido pela classe trabalhadora deve estar a luta pela expropriação de todo o sistema financeiro – o Fed, os bancos privados, as empresas de investimento – tornando-os propriedade pública sob controle democrático, a fim de iniciar a construção de uma sociedade socialista, na qual a necessidade humana, e não o lucro privado, seja a força e o princípio norteador.

A luta por este programa tem um caráter imediato e explosivo. Os acontecimentos de 6 de janeiro revelaram que, como resultado de uma crise crescente enraizada no próprio coração do capitalismo americano, a democracia, em sua forma burguesa, está em seu leito de morte. Ela só pode reviver e se desenvolver em novas bases socialistas.

(Artigo publicado originalmente em inglês em 26 de janeiro de 2021)

Loading