Este documento foi publicado originalmente em sete partes, entre dezembro de 1988 e janeiro de 1989, no Bulletin, jornal da Workers League, a predecessora do Partido Socialista pela Igualdade (EUA) e então seção americana do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI).
No presente formato, ele foi publicado em 1989 na revista Fourth International Vol. 16 Nº 1-2, publicação internacional do CIQI.
Da "Frente do Povo" à "Esquerda Unida"
Os stalinistas argentinos desempenharam o papel mais vergonhoso durante o período da ditadura militar de 1976 a 1983. Enquanto os morenistas e outros partidos da esquerda pequeno-burguesa foram lançados na ilegalidade e seus membros perseguidos e mortos, o PC recebeu o mesmo tratamento que os partidos da burguesia, com seu status político sendo meramente "suspenso".
Na prática, isso significava que a junta permitia ao stalinismo argentino uma existência semilegal. E os stalinistas não fizeram nada para que os generais sanguinários se arrependessem dessa decisão.
Durante esse período de tortura generalizada e execuções de trabalhadores, jovens e intelectuais, a junta expandiu constantemente seu lucrativo comércio com a União Soviética, e o PC, servindo fielmente aos interesses da burocracia stalinista de Moscou, deu todo o seu apoio à junta, só não abertamente. Em virtude de seu controle sobre vários bancos cooperativos sindicais, os próprios stalinistas lucraram com as "reformas" financeiras introduzidas pelo chefe econômico da junta, Martínez de Hoz.
Assim, com a queda da junta e a crescente onda de ilusões democrático-burguesas que foram promovidas tanto entre a pequena burguesia como em setores da classe trabalhadora, os stalinistas sentiram uma clara necessidade de mudar sua imagem. A necessidade aumentou após o fracasso político do partido em apoiar o peronismo nas eleições de 1983, em condições em que massas de trabalhadores e da classe média identificavam a direção peronista direitista com os crimes da junta.
Foi isso que levou o PC a iniciar sua "autocrítica", que resultou na remoção de sua velha direção e no chamado à "unidade" da esquerda. Os morenistas estavam mais do que dispostos a dar uma cobertura "trotskista" para os crimes do stalinismo argentino.
O PC ditou o programa da FREPU, certificando-se de que ela não fosse além da sua própria política contrarrevolucionária de colaboração de classes. O MAS o apoiou integralmente, tentando, às vezes, encobrir essa plataforma pequeno-burguesa com uma retórica de esquerda.
O "Programa de 23 Pontos" da FREPU também se adaptava à ideologia nacionalista pequeno-burguesa do "peronismo combativo", e nas eleições de 1985 os morenistas e stalinistas concordaram em apoiar os peronistas como candidatos da frente. Eles chegaram ao ponto de chamar a FREPU de "frente independente dos trabalhadores peronistas".
O claro objetivo era desviar a classe trabalhadora argentina de romper com o peronismo e desenvolver uma política proletária revolucionária independente. Isso não era novidade para os morenistas, que em um período anterior haviam chamado seu partido de POR (para Peronismo Operário Revolucionário) e haviam publicado a imagem do general no cabeçalho de seu jornal. Mas no contexto da crise que envolveu o movimento peronista no período posterior à queda da junta, essa política desempenhou um papel particularmente criminoso no apoio à ordem política burguesa.
Em todos os aspectos essenciais, o programa da FREPU replicou a perspectiva falida nacionalista pequeno-burguesa que dominou o movimento operário no período dos levantes revolucionários de 1969 a 1976 – uma perspectiva que levou esse movimento ao desastre. A Frente do Povo atribuiu-se a tarefa de reconstrução desse movimento e com ele o domínio da política pequeno-burguesa sobre a classe trabalhadora. Ela repetiu os mesmos slogans de "democracia com justiça social" e "libertação ou dependência", que serviram para fomentar ilusões fatais nas capacidades do nacionalismo burguês de lutar contra o imperialismo.
O "Programa de 23 Pontos" declarou desde o início que a causa da crise econômica e política na Argentina era "a dependência e o domínio dos monopólios imperialistas, dos grandes capitalistas e da oligarquia sobre os pilares da economia....". E uniu a isso o apelo a "uma ruptura com a dependência do imperialismo", a palavra de ordem "libertação ou dependência" e a convocação da "segunda independência da América Latina".
Tudo isso foi projetado para consolidar o antigo bloco de classes há muito defendido pelos stalinistas e para apoiar sua perspectiva de revolução em "duas etapas" – a independência primeiro, seguida do socialismo num futuro distante. Essas perspectivas contrarrevolucionárias, em todos seus aspectos essenciais, são compartilhadas pelos próprios morenistas.
Nem é preciso dizer que o "Programa de 23 Pontos" não faz qualquer análise do papel da burguesia nacional, tampouco das relações de classe como um todo na Argentina.
Se oferecendo como conselheiros "de esquerda" à burguesia, os líderes stalinistas e morenistas da FREPU advertiram no programa que a política de austeridade econômica perseguida por Alfonsín a mando do FMI "constitui uma ameaça potencial à estabilidade institucional e aos direitos democráticos".
Nesse ponto, o programa da FREPU ecoou a velha e infame linha política da "institucionalização", que os morenistas defenderam durante o período de regime peronista que levou ao golpe militar. Essa linha apresenta as instituições democráticas burguesas, através das quais a classe capitalista exerce sua ditadura sobre a classe trabalhadora, como uma conquista da própria classe trabalhadora, equiparando-as aos direitos democráticos que os trabalhadores têm garantido através da luta aguerrida contra essas mesmas instituições.
Com base nessa linha, em meados dos anos 1970, os morenistas juraram sua lealdade ao Estado burguês contra todas as formas de "extremismo" e assim ajudaram a desarmar a classe trabalhadora diante dos militares fascistas.
A preocupação da FREPU de que a intensificação da luta de classes, provocada pelas políticas econômicas do imperialismo e seus agentes nativos, representaria uma nova ameaça à “estabilidade institucional” tinha um conteúdo muito definido no período aberto pela chegada do regime de Raúl Alfonsín ao poder.
Essa transferência de poder do regime militar ao civil ocorria em todo o continente com a bênção e colaboração do imperialismo americano como meio de evitar uma revolução socialista e promover a credibilidade necessária ao Estado burguês para começar a implementar os planos de austeridade do FMI.
O chamado da FREPU às massas para defender essas "instituições" contra as políticas ditadas pelo imperialismo só poderia servir para desviar o movimento espontâneo da classe trabalhadora para fins inúteis e inofensivos. Esse programa serviu como o plano da frente popular para defender a "democracia" contra a "ditadura", subordinando a classe trabalhadora à burguesia.
Ele ganharia carne e osso na Rebelião da Semana Santa de 1987, quando os militares desafiaram mais uma vez as "instituições" apodrecidas da democracia burguesa.
A tentativa dos morenistas de fazer essa aliança reacionária com o stalinismo e o nacionalismo pequeno-burguês se passar por uma "frente única" proletária representou um deboche grotesco do marxismo e demonstrou mais uma vez seu completo desprezo por todo o legado histórico do trotskismo.
A tática da frente única e oposição às traições da frente popular nos anos 1930 foi a ponta de lança da luta de Trotsky contra o stalinismo. Em sua firme luta pela frente única das organizações da classe trabalhadora contra a ameaça fascista na Alemanha, Trotsky descreveu como "inadmissível" o "tipo de bloco entre duas direções numa plataforma política comum, vaga, enganosa, que não vincula ninguém a ação nenhuma".
"Nenhuma plataforma comum com a Social Democracia, ou com os líderes dos sindicatos alemães", escreveu ele, "nenhuma publicação, bandeira, cartaz comum. Marchar separadamente, atacar juntos! Acordo apenas sobre como atacar, quem atacar, e quando atacar!" (Trotsky, Germany 1931-1932, New Park, p. 34).
Particularmente na esfera da política eleitoral, na qual um partido revolucionário deve defender seu programa da maneira mais clara e precisa a fim de lutar pela independência política do proletariado e combater quaisquer ilusões na democracia burguesa, tais blocos só podem servir para trair a classe trabalhadora.
A FREPU era o tipo de bloco "inadmissível" do qual Trotsky falava. Como os acontecimentos provariam, ela se baseava na perspectiva de marchar juntos, atacar separadamente.
A colaboração eleitoral dos morenistas com o stalinismo e o nacionalismo pequeno-burguês deu seus frutos com a Rebelião da Semana Santa de 1987, quando um grupo de oficiais militares fascistas apreendeu algumas instalações militares exigindo o fim dos julgamentos das violações aos direitos humanos e anistia aos assassinos e torturadores fardados da antiga junta.
Logo que a rebelião foi iniciada, a direção do PC rumou ao palácio presidencial para se juntar a Alfonsín, aos peronistas, aos capitalistas argentinos e à burocracia trabalhista para assinar a chamado Lei de Compromisso Democrático. Esse infame documento declarou apoio incondicional às instituições do Estado capitalista e serviu de base política para a anistia posterior concedida à grande maioria dos criminosos militares.
Os stalinistas combinaram esse serviço prestado à burguesia a uma suspensão de sua aliança eleitoral com os morenistas. Apesar do MAS não ter participado da assinatura do documento, ele seguiu demandando a reconstrução da FREPU e sustentando seu programa. No início, o MAS pediu ao PC que repudiasse sua traição como condição para reconstituir sua aliança. Mas, em pouco tempo, deixou claro que estava preparado para reerguer a FREPU sem questionamentos e que colaboraria para encobrir a facada dada pelo stalinismo nas costas da classe trabalhadora argentina.
Nem uma palavra sobre os eventos da Semana Santa de 1987 foi dita no momento em que o MAS e o PC reconstituíram sua aliança de frente popular para as eleições de 14 de maio de 1989. Em seu jornal, Solidaridad Socialista, os morenistas afirmaram secamente: "Em 1987 surgiram graves diferenças que levaram ao desmembramento da Frente do Povo. Mas em 1988 o MAS convocou a formação de uma nova frente de esquerda...".
Questionado sobre como o MAS poderia reformar essa frente em condições nas quais o PC não havia revisto sua posição de capitulação aos militares, um líder morenista respondeu que essa questão já não era mais "útil" e que da mesma forma poderia-se "levantar a exigência de que eles repudiassem o assassinato de Trotsky como uma condição para a frente"!
Útil ou não, assim que o bloco MAS-PC-peronismo foi reconstituído, novas rebeliões militares demonstraram que a traição da Semana Santa de 1987 não deixara de ser um fato central na vida política argentina. Ao reformar a aliança de frente popular, os morenistas se preparavam para uma nova e mais decisiva traição da classe trabalhadora.
Em outubro de 1988, o MAS e a FRAL (a aliança eleitoral criada pelo PC e os peronistas de esquerda após a ruptura da FREPU) formaram a Esquerda Unida, organizando o que a imprensa argentina descreveu como "primárias ao estilo americano" entre Luis Zamora do MAS e Nestor Vicente da FRAL, dominada pelos stalinistas.
O MAS participou dessas primárias "ao estilo americano" com gosto, enterrando todas as questões programáticas para exaltar as virtudes pessoais de Zamora como o único homem apto a liderar a "esquerda".
Mais uma vez, o rosto que o MAS escolheu mostrar durante uma campanha eleitoral expôs o caráter de classe da tendência morenista. Além do advogado pequeno-burguês Zamora, os morenistas listaram como seus principais candidatos: Marcelo Parilli, também advogado, Silvia Diaz, ex-ativista estudantil, e Eduardo Tato Pavlovsky, o dramaturgo internacionalmente conhecido.
A Esquerda Unida promoveu essencialmente o mesmo programa nacionalista pequeno-burguês sustentado antes pela FREPU. Todos os antigos slogans, "uma segunda independência latino-americana", "justiça social" e "democracia autêntica" foram incluídos, enquanto as políticas socialistas foram mantidas de fora.
Ao aderir à coalizão, o MAS assinou um acordo comprometendo-se a restringir sua própria agitação e propaganda eleitoral inteiramente a esse programa e jurando suprimir qualquer crítica aos stalinistas e peronistas, trabalhando continuamente por "acordo e consenso".
Na campanha para as primárias da Esquerda Unida, o MAS conduziu o tipo de campanha que faria corar até mesmo um candidato do Partido Democrata dos EUA. Fiel a seu acordo, não proferiu uma única palavra inamistosa para os stalinistas. Em vez disso, argumentou que Zamora deveria ganhar a indicação porque "ele é uma figura pública identificada na grande mídia com as propostas comuns que levantamos". Certamente qualquer trabalhador com consciência de classe teria o direito de perguntar por que os proprietários capitalistas dos "meios de comunicação de massa" escolheram fazer dele uma figura assim.
No final, entretanto, a vitória nas primárias de dezembro de 1988 da Esquerda Unida foi de Vicente, um homem descrito pela publicação Que Pasa? do PC como "um militante com profundas convicções cristãs". Zamora e o MAS aparentemente estão contentes em servir como cabos eleitorais desse ativista cristão enquanto esperam receber votos suficientes para dar a Zamora um assento na Câmara dos Deputados.
A Esquerda Unida não é simplesmente uma reedição da FREPU sob outro nome. Ela representa um novo passo à direita das forças stalinistas, revisionistas e nacionalistas pequeno-burguesas da Argentina sob condições de intensificação explosiva da crise econômica e política.
O líder do Partido Comunista, Patricio Echegaray, deixou isso claro em seu discurso resumindo a perspectiva por trás da formação da frente: "Estamos no processo de abandonar uma esquerda de protesto com promessas para um futuro distante, a fim de passar ao desafio de uma nova cultura de esquerda".
Qual é o conteúdo dessa "nova cultura de esquerda" apresentada pela Esquerda Unida? Ao abandonar até mesmo a alegação de lutar pelo socialismo – que Echegaray escolhe chamar de "protesto" e "promessas para o futuro distante" – esses elementos se preparam para tornar-se agentes diretos do Estado capitalista e carrascos da classe trabalhadora argentina através da criação da frente popular.
Os morenistas já estão bem avançados no processo de condicionar sua organização para tal papel. No período recente, sua atitude fundamental em relação ao Estado capitalista – expressa repetidamente em sua defesa das "instituições" da democracia burguesa – tomou as formas mais grotescas.
Por exemplo, em meados de julho do ano passado, o Solidaridad Socialista lançou uma campanha sensacionalista contra o "crime" e a "violência", que refletiu diretamente a propaganda reacionária que estava sendo feita pela imprensa burguesa. Qualquer trabalhador que leia os jornais capitalistas ou assista aos noticiários televisivos dos EUA estaria muito familiarizado com o tipo de cobertura.
O propósito de uma tal campanha na Argentina era claro: justificar tanto o assassinato de jovens pela polícia quanto a acúmulo das forças de segurança para mais uma vez serem usadas contra o conjunto da classe trabalhadora.
O Solidaridad Socialista publicou uma campanha de página dupla, com grandes letras em vermelho e preto: "Assaltos e Violência, Nova Praga Atinge os EUA".
Depois de nutrir seus leitores com relatos sensacionalistas de assaltos e agressões, os morenistas lançaram as seguintes demandas inacreditáveis para lidar com o "problema da criminalidade": "A polícia deve ser eleita pelo povo como ocorre com o xerife nos Estados Unidos. Dessa forma, se eles forem eleitos pelas próprias pessoas do lugar e tiverem que prestar contas a elas, há mais possibilidades de que a polícia atenda ao chamado do trabalhador e não à ordem de cuidar da ... propriedade dos milionários".
Que fantasia pequeno-burguesa reacionária! Qualquer trabalhador argentino que esteja prestes a ser levado por esse disparate morenista só precisa rever a experiência do movimento operário nos EUA, onde xerifes e policiais de todas os tipos foram usados para atacar piquetes e reprimir greves. Tal concepção, de que o fato da polícia ser eleita a transformaria de um destacamento de homens armados defendendo o capitalismo em protetores dos trabalhadores, representa o total repúdio do marxismo e a submissão ao Estado burguês.
Em agosto, o Solidaridad Socialista deu seguimento a esse artigo com outro apelo para a "formação de comissões de vigilância de bairro" para lidar com o crime. Propôs "autorização para portar armas de fogo para defesa pessoal a todos os habitantes que tenham uma profissão ou emprego honesto".
Essas propostas foram feitas quando o próprio Juan Carlos Rousselot, prefeito do subúrbio de Morón, em Buenos Aires, estava formando um esquadrão de vigilantes. Rousselot esteve intimamente ligado ao antigo regime peronista e em particular a seu ministro da Previdência Social, José Lopez Rega, o fundador dos esquadrões da morte do Triplo A, que foram empregados contra a classe trabalhadora e a esquerda naqueles anos.
Em vez de exigir a criação de destacamentos de defesa operários contra tais vigilantes fascistas, os morenistas tentaram competir com eles na proposta de soluções "práticas" para o problema do "crime".
Finalmente, no período que antecedeu a criação da Esquerda Unida, os morenistas se destacaram por sua campanha entre a classe trabalhadora em defesa da polícia, que havia entrado em greve exigindo salários mais altos. Os morenistas sugeriram que isso provava que tais veteranos da "guerra suja" faziam parte da classe trabalhadora.
Na realidade, a posição da polícia era que, enquanto defensores essenciais da ordem capitalista, eles não deveriam ser submetidos às mesmas medidas de austeridade impostas aos trabalhadores.
Em outubro, uma intervenção pública nessa linha feita pelo candidato do MAS Luis Zamora foi reportada na revista de notícias argentina El Periodista. A revista relatou a participação de Zamora na manifestação semanal das Mães da Praça de Maio, em 13 de outubro, quando ele pediu para falar, "defendendo o caráter da polícia como operário e o apoio de seu partido a sua ‘reivindicação salarial justa’”.
A revista noticiou: "Nesse momento, começaram as vaias e assobios, vindos especialmente da área ocupada pelas mulheres de cachecóis brancos. Diante dessa situação inesperada, Hebe de Bonafini (a líder das Mães) pegou o microfone e disse que "somos democráticas e devemos permitir que todos falem, mesmo aqueles que dizem absurdos".