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Perspectivas

A apropriação ilegal do poder por Donald Trump e o espectro do Bonapartismo Americano

Publicado originalmente em 10 de agosto de 2020

No sábado, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou uma série de medidas direcionadas, declaradamente, ao corte de seguro desemprego federal, que marcam um novo estágio em sua tentativa de abolir todas as restrições constitucionais ao poder do presidente.

Trump anunciou um adiamento do imposto federal sobre a folha de pagamento, que causaria cortes na Previdência Social, além de estender o seguro desemprego em um nível muito mais baixo.

O Congresso permitiu que o subsídio federal de desemprego perdesse a validade há mais de duas semanas, o que levou 16 milhões de trabalhadores desempregados nos EUA e suas famílias para a pobreza. Com o fim do seguro desemprego federal de 600 dólares por semana, o valor do benefício caiu para o nível dos benefícios estaduais, que podem ser inferiores a 300 dólares.

As medidas de Trump constituem uma imposição ilegal sobre os poderes do Congresso, como determinados pela Constituição, que declara que "o Congresso terá Poder para estabelecer e cobrar Impostos... e subsidiar... o Bem-Estar geral dos Estados Unidos".

A usurpação ilegal por Donald Trump das prerrogativas do Congresso de tributar e aprovar gastos é o último ato de uma série de ações inconstitucionais. Em fevereiro do ano passado, Trump declarou Estado de Emergência para se apropriar indevidamente das verbas do Pentágono, contra o Congresso, para construir seu aparato de repressão na fronteira sul do país.

Em junho, em meio aos grandes protestos contra a violência policial, Trump ameaçou invocar a Lei da Insurreição e mobilizar os militares por todo o país. Quando setores militares resistiram a essa tentativa de golpe, temendo que ela não estivesse adequadamente preparada e criaria uma explosão social, Trump enviou agentes federais de fronteira para Portland, Oregon, onde eles espancaram manifestantes e os levaram para veículos não identificados.

Ao anunciar as novas medidas, Trump se apresentou como mediador de um impasse no Congresso. "Jogos políticos que prejudicam vidas americanas são inaceitáveis, especialmente durante uma pandemia global, e por isso estou tomando medidas para proporcionar segurança financeira aos americanos", disse Trump. Perguntado se ele estava "tentando criar um novo precedente para que o presidente possa agir em desafio ao Congresso", Trump respondeu: "o Congresso tem impedido... as pessoas de obterem dinheiro extremamente necessário".

As ações de Trump têm o caráter do Bonapartismo. O termo é derivado do exemplo histórico do famoso general francês que governou a França durante 15 anos como um ditador. Em seu uso moderno, ele denota uma situação política que surge num período de tensão social aguda, quando as normas tradicionais da democracia burguesa se tornam disfuncionais. O executivo do Estado capitalista - nos Estados Unidos, o presidente - usa o impasse para aumentar seu poder.

O Bonapartista parece elevar-se acima das classes ou das facções políticas em disputa, através das quais a política burguesa, de acordo com as disposições constitucionais, normalmente procede. Contando cada vez mais com as forças repressivas do Estado - militares, policiais, agências de inteligência e, se necessário, forças paramilitares - o presidente se afirma como o super-juíz do conflito entre facções e classes. Na verdade, no entanto, ele fala em defesa de interesses de classe bem definidos.

Escrevendo sobre o fenômeno das ditaduras Bonapartistas na Europa que chegaram ao poder antes da ascensão do fascismo, Trotsky escreveu:

Elevando-se politicamente acima das classes, o Bonapartismo, como seu antecessor Cesarismo, aliás, representa no sentido social, sempre e em qualquer época, o governo da parte mais forte e firme dos exploradores; consequentemente, o Bonapartismo atual não pode ser nada mais que o governo do capital financeiro que dirige, inspira e corrompe as cúpulas da burocracia, da polícia, da casta dos oficiais e da imprensa.

Trump ainda não criou uma ditadura. Um vigarista do mercado imobiliário e de casinos - sem conquistas militares das quais se gabar - tem credenciais limitadas para se posicionar como um Bonaparte dos tempos modernos. Mas todas as suas ações estão voltadas para a criação de uma ditadura desse tipo.

A apropriação de poder por Trump é facilitada pelo caráter traiçoeiro e hipócrita de sua oposição pelo Partido Democrata. Eles se apresentam como solidários com a situação dos trabalhadores desempregados, enquanto na realidade representam os interesses de uma oligarquia corporativa e financeira que se beneficia materialmente da redução do subsídio aos desempregados - os mesmos interesses representados por Trump.

Por um lado, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, disse repetidamente que está buscando uma extensão integral dos subsídios federais aos desempregados. Por outro lado, o líder democrata do Senado, Chuck Schumer, apresentou no mês passado um projeto de lei que reduziria a complementação do seguro desemprego "em 100 dólares quando a taxa de desemprego cair abaixo de 11% [em um determinado estado], e em outros 100 dólares cada vez que a taxa cair outro ponto percentual", de acordo com o New York Times. Dado que a taxa oficial de desemprego nos EUA já está em 10,2%, a proposta de Schumer significaria um corte nos benefícios de desemprego para a grande maioria dos trabalhadores desempregados nos EUA.

O New York Times, o principal jornal associado ao Partido Democrata, chamou o projeto de lei de Schumer de "uma forma mais inteligente de fornecer aos trabalhadores uma ajuda necessária e oportuna".

O Washington Post, o outro grande jornal americano alinhado com o Partido Democrata, apelou por uma "renovação dos seguro desemprego a uma taxa elevada sem desincentivos ao trabalho". O termo "desincentivos" é um eufemismo para cortar o seguro desemprego, que supostamente desencoraja os trabalhadores a retornar aos locais de trabalho.

Em uma coluna publicada no Washington Post no mês passado, o ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos, Jason Furman, e o ex-secretário do Tesouro Timothy Geithner, ambos do governo Obama, declararam que "a extensão do seguro-desemprego semanal de US$600 decretado no início do fechamento econômico não faz sentido agora".

A realidade básica é que os membros do Partido Democrata, os do Partido Republicano no Congresso e Trump, apesar dos diferentes papéis políticos que desempenham, apoiam a mesma política fundamental e bipartidária da classe dominante em resposta à pandemia da COVID-19.

Em meados de março, quando a pandemia ameaçou causar uma grande crise financeira para bancos e corporações americanas super-endividadas, os Democratas e Republicanos se uniram quase unanimemente para aprovar a chamada Lei CARES, que sancionou um resgate de trilhões de dólares para Wall Street e os ricos. Quando se tratava de entregar dinheiro aos ricos, qualquer “impasse" em Washington desapareceu repentinamente.

Uma vez aprovado o gigantesco resgate às corporações, a classe dominante americana adotou imediatamente o mantra de que "a cura não pode ser pior do que a doença", exigindo que os trabalhadores voltassem ao trabalho.

Tanto o governo federal quanto os estados rapidamente abandonaram até mesmo os esforços mínimos para conter a pandemia, com mais da metade dos governadores reabrindo empresas em confronto com as próprias diretrizes do Centro de Controle de Doenças, o que incluiu os governadores Democratas do Maine, Carolina do Norte, Kansas e Colorado.

A reabertura prematura das empresas alimentou um enorme ressurgimento da pandemia, com mais de 1.000 pessoas morrendo todos os dias.

A redução do seguro-desemprego é fundamental para forçar os trabalhadores a voltar ao trabalho através de uma forma de recrutamento econômico obrigatório, com o objetivo de reduzir os custos de mão-de-obra e aumentar os lucros das grandes corporações pelo sacrifício da vida dos trabalhadores e de seus familiares.

É bastante possível que os congressistas, tanto Democratas quanto Republicanos, cheguem a um acordo sobre um plano para estender os benefícios de desemprego, usando a proposta de Donald Trump como base para cortar os benefícios, o que todos eles concordam ser necessário. Isto, entretanto, não resolverá nada.

O capitalismo é incompatível com as necessidades da sociedade, pois é incompatível com formas democráticas de governo. Qualquer resolução progressista para a catástrofe da pandemia que continua se alastrando e para a catástrofe social que envolve os Estados Unidos depende da intervenção independente da classe trabalhadora com base em um programa revolucionário e socialista.

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