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Marxismo, o Comitê Internacional e a ciência da perspectiva: uma análise histórica da crise do imperialismo americano

Estamos publicando o discurso de David North, secretário nacional do Partido Socialista pela Igualdade (SEP) e presidente do comitê editorial do World Socialist Web Site, a uma reunião nacional do partido realizada em Ann Arbor, Michigan, em 8 e 9 de janeiro de 2005.

Ao abrir o encontro nacional de membros do Partido da Igualdade Socialista, é importante observarmos um minuto de silêncio em homenagem às dezenas de milhares de pessoas no Sul da Ásia que morreram mês passado no tsunami que varreu o oceano Índico.

Ao redor do globo houve uma expansão de profunda empatia às vítimas do tsunami, assim como expressões verdadeiras de solidariedade. Que diferentes são essas manifestações de luto verdadeiro das demonstrações de preocupação hipócritas, formais e de má vontade da parte dos líderes do imperialismo britânico e americano! Nem Bush nem Blair foram capazes de expressar interesse, de maneira convincente, no destino de milhões de pessoas cujas vidas foram devastadas pela catástrofe.

Até mesmo a mídia estava envergonhada pela maneira com a qual a Casa Branca respondeu, ou, sendo mais preciso, falhou em responder à tragédia que se desdobrou. Primeiro houve o silêncio extraordinário, que persistiu por quase 3 dias enquanto o presidente americano folgava em seu rancho no Texas e o primeiro ministro britânico cuidava de seu bronzeado em uma praia egípcia, totalmente alheios às conseqüências do tsunami. Então veio a mísera oferta de Bush de 15 milhões de dólares em ajuda, aumentada com má vontade para 35 milhões e, mais tarde, para 350 milhões. Obviamente, quando comparada com as quantias despendidas pelos Estados Unidos em operações voltadas para matar pessoas, principalmente no Iraque, o dígito de 350 milhões representa nada mais do que meros trocados.

De fato, 350 milhões é apenas uma pequena porcentagem do valor total de dinheiro pago anualmente aos 500 maiores diretores executivos americanos em forma de salários e opções para compra de ações, cujo número chega aos bilhões de dólares. Em 2003, a recompensa total de Charles M. Cawley da MBNA excedeu os 45 milhões; a de Stanley O´Neil da Merrill Lynch foi de 28.3 milhões, a de Daniel P. Amos da Aflac foi 37.3 milhões; a de Kennedy Chennault da American Express foi de 40 milhões; a de Patrick Stokes da Anheuser Busch foi 49 milhões. Selecionei esses nomes aleatoriamente de uma lista de aproximadamente 1.000 executivos publicada em um site que investiga recompensas de executivos.

Quando se considera a quantia de dinheiro movimentada pelas contas bancárias dessas pessoas, o tamanho das contribuições de caridade vindas dos Estados Unidos relatadas pela mídia não parece assim tão impressionante. Pode-se ter certeza de que o contribuinte comum da classe trabalhadora está doando uma porcentagem muito maior de seu rendimento semanal para esforços humanitários do que o executivo que, antes de assinar um cheque, discute a questão com seus contadores e calcula os descontos nos impostos.

Depois das conseqüências do tsunami apareceu uma série de artigos na imprensa explicando as causas geológicas do desastre, sendo isso informação científica de relevância, mas que precisa ser complementada por análises dos fatores sociais significantes que constituem um elemento causal maior na desastrosa perda de vidas. Essa tarefa geralmente é evitada pela mídia, que acha mais fácil pontificar o caráter inescrutável das terríveis intenções da natureza. Dessa forma, somos informados pelo colunista David Brooks do New York Times: “Os humanos não são a preocupação principal do universo. Somos apenas insetos na crosta terrestre. A terra dá de ombros e 140.000 insetos morrem, vítimas de forças muito maiores e mais permanentes do que eles mesmos.” Um comentário desse nível, composto em partes iguais de ignorância e desprezo pela humanidade serve a um claro propósito: evadir a realidade e mascarar as desagradáveis verdades políticas e econômicas.

O impacto do tsunami expõe de uma maneira particularmente gráfica a natureza irracional do capitalismo, sua incapacidade de desenvolver as forças produtivas de uma maneira na qual se elevem os níveis de vida das amplas massas da população. A mídia faz alarde sobre o “milagre asiático”, mas o fato é que os benefícios da infusão de capital na região na última década recaem apenas sobre pequenas elites privilegiadas. Centenas de milhões de asiáticos vivem em favelas que, até mesmo sob as condições climáticas mais favoráveis, oferecem proteção escassa aos elementos naturais. Isso testemunha o caráter desumano do desenvolvimento econômico em uma região em que um desastre que custa a vida de mais de 150.000 pessoas não é considerado como um evento econômico fundamental pela comunidade financeira internacional. As bolsas de valores da região, incluindo a da Indonésia, Tailândia, Índia e até do Sri Lanka, não sofreram nenhuma baixa significativa com as conseqüências do tsunami. O motivo é que grande parte da população desses países vive num estado de pobreza tão brutal que sua relação com a economia nacional é de caráter apenas tangencial.

As condições sociais existentes nesses países devem ser relacionadas com suas histórias políticas. Vejamos os países que sofreram as maiores perdas na semana passada: Indonésia e Sri Lanka. È impossível entender a natureza da moderna sociedade indonesa, sua pobreza aterradora, subnutrição alastrada, expectativa de vida abaixo de 65 anos para os homens, sem nos referirmos aos eventos de 1 de Outubro de 1965. Nesse dia, a CIA, trabalhando com oficiais militares fascistas liderados pelo General Suharto, organizou um golpe que retirou o presidente nacionalista de esquerda Sukarno do poder. No decorrer do golpe, militares e esquadrões da morte muçulmanos de direita, operando com listas providenciadas pela CIA, massacraram mais de meio milhão de membros do Partido Comunista Indonésio e de outros grupos de esquerda. Durante as próximas três décadas, o regime brutalmente repressivo e apoiado pelos EUA do General Suharto manteve a Indonésia segura para investimentos capitalistas. A natureza caótica e destrutiva do desenvolvimento capitalista culminou no tsunami financeiro que devastou a economia do país em 1998.

Já o Sri Lanka, muito antes de o tsunami haver varrido sua vulnerável costa, havia sido devastado pelas políticas reacionárias e chauvinistas dos sucessivos governos burgueses. O desenvolvimento da crítica infra-estrutura social havia se subordinado às demandas financeiras de uma guerra civil provocada pela burguesia nacional.

Quando examinado em seu verdadeiro contexto político e socioeconômico, fica claro que o impacto destrutivo do tsunami é muito mais uma conseqüência do trabalho do homem do que do da natureza.

Em algum lugar do futuro, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia deverá permitir que a humanidade domine a natureza a tal ponto que será inconcebível que uma força tão elementar e primitiva quanto um tsunami possa extinguir milhares de vidas. No mínimo o homem deverá poder prever tais eventos de uma forma que permita a aplicação de contramedidas de salvamento de vidas. De fato sabemos que tal tecnologia existe e está disponível por todo o Pacífico. A questão é, o domínio pelo homem da natureza depende de seu domínio dos fundamentos socioeconômicos de sua própria existência, da abolição de todos os elementos de irracionalidade da estrutura econômica da sociedade, isto é, da substituição do capitalismo pelo socialismo.

No ambiente dominante de reação política, com seu impacto sufocante sobre as emoções e o intelecto das pessoas, a possibilidade de tal transformação parece impossível e totalmente remota, no entanto, as condições históricas para essa mesma transformação estão maturando rapidamente. De fato, há indicações crescentes de que começamos um novo ano no qual o capitalismo entra em um novo período de crises econômicas e reviravoltas políticas. A tarefa diante deste encontro é fazer a avaliação mais precisa possível da situação mundial, para então julgar nessas bases as possibilidades reais para o socialismo e determinar as tarefas políticas que advêm dessa avaliação. Esse trabalho é de caráter científico.

Em abril de 1933, Trotsky escreveu uma carta a Sidney Hook, desafiando certas formulações em um ensaio entitulado “Marxismo: Dogma ou Método?”, que o jovem professor radical havia escrito para o Nation. Hook havia escrito que o marxismo “não é nem um dogma, nem mito e nem ciência objetiva, mas sim um método realista de ação de classe”, ao que Trotsky respondeu: “O que significa aqui a palavra ‘realista’? Claramente, ela significa baseada sobre o verdadeiro conhecimento do objetivo, no caso os processos sociais; o conhecimento do objetivo é uma ciência. A política marxista é realista na medida em que é baseada no marxismo como uma ciência.” [2]

A concepção de Trotsky, de que a formulação de perspectivas políticas é um trabalho científico, contém em si mesma a premissa que os processos políticos se desdobram de acordo com leis. Essa atitude é anátema a todas as variedades pragmáticas de antimarxismo, que elevam a probabilidade e o acaso ao nível do absoluto no processo histórico, que insistem que história e política são determinadas, em última instância, pela ação recíproca de acasos e um número ilimitado de variantes insperadas e/ou imprevisíveis. O velho François Furet, historiador que havia sido membro do Partido Comunista Francês, sumarizou esse ponto de vista da maneira que se segue: “Um verdadeiro entendimento de nossa época só é possível quando nos livramos da ilusão da necessidade: a única forma de explicar o século vinte, na medida em que uma explicação se faz possível, é reafirmando seu caráter imprevisível, um atributo negado pelos maiores responsáveis por suas tragédias.”[3]

O argumento de Furet se move por dentro de um sistema bem rígido: como não é possível prever o futuro com qualquer nível significante de certeza, é absurdo falar em necessidade histórica. Para Furet, necessidade implica na existência de forças irreversíveis que levam a um e somente um resultado possível. Como é claro que o caminho do desenvolvimento histórico pode levar a resultados diferentes e até mesmo contraditórios, a convicção de que o processo histórico é sujeito a leis e que, além disso, tais leis podem ser interpretadas e influenciadas, constitui uma ilusão marxista. Não é surpresa que a crítica ferrenha de Furet ao determinismo histórico é feita no contexto de uma polêmica de um livro inteiro devotado a estabelecer a absoluta necessidade do capitalismo agora e por todos os tempos.

A posição de Furet, deveras comum entre os anti-marxistas, revela uma incompreensão ingênua do que é significado do conceito de lei e necessidade. O caráter científico do marxismo não é determinado pela exatidão de suas predições. O grau de exatidão que o marxismo ou qualquer outra disciplina científica pode atingir é a descrição de que qualquer fenômeno é determinado no final das contas pela natureza do próprio fenômeno. A natureza objetiva do fenômeno que é o sujeito da história, a sociedade humana, não é de um caráter que poderia permitir até mesmo o mais consciente materialista histórico a “predizer” exatamente o que irá acontecer em dois dias, duas semanas, dois meses e de aí em diante. Isso não é um argumento contra a aplicação de leis no processo histórico ou contra a possibilidade de seu estudo científico. Pelo contrário, isso requer uma apreciação mais profunda de como a aplicação de leis se manifesta no processo histórico. Como Lukács explicou: “leis científicas só podem se comprovar no mundo real como tendências e como necessidades somente no choque entre forças opostas, somente em uma mediação que ocorre por meio de intermináveis acidentes.” [4]

O fato de o processo histórico não ser predeterminado, que seu desenvolvimento se dá em várias direções, é uma conseqüência do fato que a evolução social prossegue através da luta de classes, as quais estão em busca de fins diferentes e mutuamente incompatíveis. Mas nem as classes como um todo, nem os partidos ou indivíduos através dos quais seus interesses socioeconômicos encontram maior ou menor expressão, funcionam como agentes livres. A amplitude e a natureza de suas atividades são essencialmente definidas pelas leis do modo de produção capitalista.

Isso não é somente verdadeiro para a classe trabalhadora, mas também para a elite dominante burguesa. A perspectiva política de nosso partido não procede de desejos e esperanças motivados subjetivamente. Os marxistas não concebem a revolução como uma punição aos pecados dos capitalistas e nem como uma recompensa por seus próprios esforços altruístas para abolir a pobreza. As perspectivas do partido revolucionário devem se desenvolver de uma análise das contradições objetivamente reais do modo de produção capitalista. Essa análise forma a base mais geral da perspectiva revolucionária. Sua elaboração mais detalhada requer que o desenvolvimento dessas contradições, em sua expressão social e política da vida real, seja investigado por dentro de várias camadas de mediação histórica, social, cultural e intelectual através das quais essas contradições devem passar.

Uma perspectiva marxista deve se preocupar com processos históricos abarcando décadas ou então com um conjunto mais imediato de condições políticas concretas nas quais o limite temporal de ação revolucionária é de duração muito menor. Mas até mesmo no último caso, o ponto de referência do partido marxista é sempre o processo histórico mais amplo. As táticas que são planejadas para atender as exigências das circunstâncias e dos problemas conjunturais devem estar de acordo com os objetivos principistas definidos pelo programa histórico e as tarefas do movimento socialista internacional. Deve-se acrescentar que não é possível entender problemas e condições conjunturais a não ser que sejam estudados dentro dos moldes dos objetivos estratégicos definidos pela natureza do período histórico.

Finalmente, o desenvolvimento de perspectivas revolucionárias requer uma atitude ativa e não contemplativa para com a sociedade e a luta de classes. Objetividade não significa passividade. A avaliação do partido revolucionário da realidade objetiva e o balanço das forças de classe incluem uma estimativa do impacto e das conseqüências de sua própria intervenção no processo revolucionário. A interpretação correta do mundo, como Marx explicou em sua 11ª tese sobre Feuerbach, só pode se desenvolver na luta pela sua transformação.

Mas a apreciação correta do elemento “ativo” no processo de cognição, cuja descoberta e elucidação constituíram uma das grandes conquistas da filosofia idealista alemã do fim do século XVIII e início do XIX (acima de tudo, na obra de Hegel), não pode ser levada a significar que o mundo objetivo pode ser moldado e transformado da maneira que qualquer um quiser. Não há tendência filosófica com implicações mais perigosamente reacionárias que aquela que separa a atividade do “desejo” da cognição científica dos processos sociais objetivos e governados por leis que constituem os determinantes essenciais da prática social do homem. A atividade do partido revolucionário deve proceder de uma avaliação correta das tendências básicas do desenvolvimento socioeconômico em escala mundial. Sem que se baseie nesse fundamento, o trabalho do movimento revolucionário pousará sobre nada mais substancial do que impressões e adivinhações... e isso acabará em desastre.

Completando exatamente 20 anos nesta semana, em janeiro de 1985, delegados de várias seções do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI) viajaram à Inglaterra para participar do 10º Congresso do Comitê Internacional, que acabou sendo o último congresso internacional presidido pelo Partido Revolucionário dos Trabalhadores da Grã-Bretanha (WRP), liderado por Gerry Healy, Cliff Slaughter e Michael Banda.

Uma crise política se levantava dentro do movimento internacional por mais de uma década até então. Durante os três anos anteriores, o esforço em discutir e examinar concepções filosóficas errôneas e sérios erros na linha política do Comitê Internacional havia sido reprimido pela liderança do WRP. Quando o CIQI se reuniu em janeiro de 1985, o movimento mundial inteiro estava perigosamente desorientado, e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores estava na pior forma possível. O esboço da resolução de perspectivas preparado por Slaughter buscava mascarar sua vacuidade analítica com uma retórica bombástica. Em passagem sintomática disso, proclamava: “As leis objetivas do declínio capitalista agora operam sem empecilhos, elas avançaram.”. Se isso fosse verdade, significaria então que teria surgido uma situação não somente sem precedentes na história do capitalismo como também uma que o próprio Marx teria considerado teórica e praticamente impossível.

Afirmar que as leis do declínio capitalista operavam “sem empecilhos” só poderia significar que: 1) toda resistência subjetiva a esse declínio da parte da própria burguesia teria chegado a um fim e, 2)até mesmo aquelas contra-tendências balanceadoras que emergem naturalmente de dentro dos processos do próprio capitalismo para atenuar, quando não reverter inteiramente, o declínio já se tornaram totalmente inoperantes. Em outras palavras, a dialética socioeconômica do capitalismo como um sistema histórico teria simplesmente se acabado.

Uma outra passagem dizia que “A realidade é que as batalhas revolucionárias decisivas já estão sendo travadas” . Mesmo com essas palavras fluindo do bico da caneta tinteiro de Cliff Slaughter, havia sinais inconfundíveis de que a classe trabalhadora estava em recuo por todo o mundo. Se fosse verdade que “as batalhas revolucionárias decisivas” estavam em progresso, seríamos então forçados a reconhecer que elas teriam sido perdidas.

De forma semelhante, intoxicado por sua própria retórica, Slaughter declarava que “O proletariado dos Estados Unidos, nunca derrotado, entra em lutas de natureza revolucionária juntamente com proletários do restante do mundo”. A rigor, a classe trabalhadora dos Estado Unidos havia passado pela experiência de uma série de grandes derrotas desde que Reagan chegara à Casa Branca quatro anos antes. Traídos e desencorajados, as atividades de greve haviam caído ao menor número em décadas.

O fato de tais passagens poderem ser apresentadas como uma contribuição séria à elaboração das perspectivas revolucionárias comprovava o atordoamento teórico e a falência política dos líderes do WRP.

Dada a extraordinária história política dos líderes do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, principalmente a de Gerry Healy, a situação na qual eles haviam chegado era profundamente trágica. A participação de Healy no movimento revolucionário se alastrava por mais de meio século, ele cumpriu um papel importante como apoiador de James P. Cannon na luta internacional contra o revisionismo Pablista que levou à fundação do Comitê Internacional da Quarta internacional em 1953. Durante a década seguinte, Healy resistiu aos deslizes do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) nos Estados unidos e se opôs a seus esquemas de reunificação sem princípios com o movimento Pablista. A sobrevivência do Comitê Internacional, em face de condições políticas extremamente desfavoráveis, deu-se principalmente graças à defesa incansável de Healy dos princípios trotskistas. Sem a luta que ele liderou, a Liga dos Trabalhadores (precursora do Partido Socialista da Igualdade) nunca haveria surgido.

Além disso, é em grande parte graças aos esforços de Healy que o Comitê Internacional, principalmente após o rompimento com o SWP em 1963, prestou atenção especial aos sinais de uma crescente crise econômica dentro do capitalismo mundial. Em contraste com os pablistas, cujas políticas oportunistas refletiam sua própria fé profunda na estabilidade do capitalismo pós-guerra, o Comitê Internacional da Quarta Internacional acompanhou de perto os sinais de que os fundamentos financeiros e monetários do capitalismo mundial lançados no final da 2ª guerra estavam sob intensa pressão. O Comitê Internacional se encontrava, então, em uma posição de compreender até mesmo as implicações políticas e econômicas de longo alcance e as implicações políticas das decisões feitas pela administração de Nixon em 1971, as quais trouxeram um fim abrupto aos “Anos Dourados” do capitalismo pós-guerra.

Na noite de domingo de 15 de agosto de 1971, o presidente Richard M. Nixon foi à TV nacionalmente anunciar que estava tomando uma série de medidas econômicas em resposta à deterioração profunda das balanças comercial e de pagamentos dos Estados Unidos, assim como aos sinais de crescente pressão inflacionária. Ele anunciou que os Estados Unidos não iriam mais honrar sua obrigação, de acordo com as regras do sistema monetário internacional que haviam se estabelecido após a conferência de Bretton Woods de julho de 1944, de converter em ouro de acordo com a demanda os dólares detidos por seus parceiros comerciais internacionais. Esse desenvolvimento passou em grande parte desapercebido pelos pablistas. Para o Comitê Internacional, no entanto, ele representou o desenvolvimento econômico mais significativo desde o fim da segunda guerra e abriu caminho para um enorme aprofundamento da crise econômica mundial e para a intensificação do conflito internacional de classes. No coração desse conflito encontrava-se a deterioração da posição mundial do capitalismo americano.

Em sua análise desse desenvolvimento, o CIQI reviu a significância do sistema econômico internacional cujas bases foram fundadas na conferência de Bretton Woods em 1944, durante o estágio final da segunda guerra mundial. Fora dos Estados Unidos, os velhos poderes burgueses estavam arruinados. A burguesia francesa estava politicamente desacreditada e seu sistema financeiro havia estremecido. O regime de Hitler afundou o capitalismo alemão no abismo e o país inteiro estava em chamas. Os custos da 2a Guerra, que seguiu a primeira com um intervalo de apenas 20 anos, haviam levado a Grã-Bretanha à falência. Por toda a Europa, a classe trabalhadora havia tomado a ofensiva contra o fascismo e a barbárie imperialista, o desejo popular pelo estabelecimento revolucionário em lugar do capitalismo era impressionante. Uma situação parecida estava na ordem do dia no Japão, onde a guerra caminhava rapidamente ao seu horrível desenlace. Ao redor da Ásia, África e Oriente Médio, a onda de lutas anti-coloniais e antiimperialistas crescia.

Em meio ao caos da guerra, os Estados Unidos se mantinham como o grande sustentáculo do capitalismo. A guerra havia quebrado todos os seus competidores internacionais, e o país estava numa posição de ditar a seus rivais humilhados a ordem econômica mundial que emergiria das cinzas da guerra. A classe dominante americana, no entanto, entendeu muito bem que seu destino dependia da sobrevivência do capitalismo na Europa. Se a onda revolucionária pós-guerra varresse o continente europeu, estabelecendo o poder da classe trabalhadora nos velhos centros do capitalismo, o destino final de um capitalismo americano isolado estaria selado. Portanto, em uma série de decisões tomadas com uma visão de longo alcance, a classe dominante americana resolveu mobilizar seus imensos recursos industriais e financeiros para estabilizar e reconstruir o sistema capitalista mundial. O fundamento desse plano econômico envolvia a criação de um novo sistema monetário internacional, que providenciaria os recursos necessários para o restabelecimento do comércio mundial (após a interrupção de uma década causada pela depressão e pela guerra) e para a reconstrução da Europa e do Japão.

Os desastres financeiros do pós 1ª Guerra haviam convencido os Estados Unidos que a expansão do comércio mundial e que a reconstrução do capitalismo mundial eram incompatíveis com o regime de restrição de créditos do velho padrão do ouro. Porém, o que poderia substituir o ouro como um primeiro instrumento de crédito e comércio? A resposta simples seria o papel-moeda americano.

Sob as leis estabelecidas pelo novo Fundo Monetário Internacional, criado em 1947, o dólar americano serviria como a principal moeda reserva, isto é, como uma moeda através da qual ocorre a transação de um grande volume de comércio internacional. Todas as moedas internacionais teriam seus valores calculados em termos do dólar. Por sua vez, o dólar teria seu valor definido em relação ao ouro, para ser preciso, 35 dólares equivalia a uma onça.

Por detrás desses arranjos estavam dois importantes fatores: primeiro, uma porção substancial do suprimento mundial de ouro era guardado nos cofres de Fort Knox, Kentucky; segundo, e mais importante, a supremacia industrial dos Estados Unidos após a segunda guerra garantiu que suas balanças comerciais registrariam um grande superávit. Os dólares investidos ou transferidos ao exterior eram repatriados eventualmente quando países estrangeiros consumiam produtos e serviços americanos.

Portanto, o sistema monetário do pós-guerra, um sistema baseado no dólar e ancorado no ouro, era uma expressão da supremacia global dos Estados Unidos dentro das relações capitalistas. Até onde se possa falar de uma era de hegemonia americana, esta foi o período definido pela operação do sistema monetário internacional Bretton Woods baseado no dólar.

No entanto, o sistema Bretton Woods continha em si mesmo uma contradição fatal: o sucesso de sua operação tinha suas premissas na habilidade dos Estados Unidos manterem o saldo positivo em sua balança comercial e de pagamentos, ao mesmo tempo em que providenciava capital à Europa e Japão para reconstruir suas indústrias e oferecia mercado às exportações desses países. Era inevitável que o ressurgimento das indústrias européias e japonesas iriam subjugar a supremacia uma vez inquestionável dos Estados Unidos nos mercados mundiais e ter um impacto em sua balança comercial e de pagamentos. A acumulação resultante de dólares no exterior, a qual cresceria até ser substancialmente acima do valor das reservas de ouro detidas nos EUA, chegariaem algum momento a questionar a viabilidade do sistema Bretton Woods. Um economista europeu, Robert Triffin, chamou atenção a essa contradição no final dos anos 50. Nos meados da década de 60, era visivelmente aparente que as pressões sobre o sistema se tornavam mais sérias. A crise foi exacerbada pelo aumento na pressão financeira no orçamento americano causado pelo custo da guerra no Vietnã e pelo financiamento de novos programas sociais concedidos pela classe dominante americana em face às lutas das massas.

Como havia antecipado o CIQI, a quebra do sistema Bretton Woods tinha conseqüências econômicas, políticas e sociais de longo alcance. As relações econômicas internacionais estavam desestabilizadas a um nível desconhecido desde a década de 30. O velho sistema de taxas de câmbio fixas deu lugar a um novo e imprevisível sistema baseado em moedas flutuantes, com o valor de cada moeda nacional sendo determinado pelo mercado. Quanto ao dólar, não mais conversível em ouro a um preço fixo, este entrou em um processo de declínio prolongado, sua desvalorização levou quase que imediatamente a um estouro na inflação global e a um colapso nos valores de ações nos mercados acionários. Até 1973, o capitalismo mundial havia confrontado a combinação mais perigosa de crises econômicas e políticas desde os anos 30.

Esses acontecimentos substanciaram a análise que o Comitê Internacional havia feito da crise global do capitalismo. Os anos 70 foram uma década que testemunhou um levante revolucionário da classe trabalhadora. Em resposta à inflação, a classe foi à ofensiva: a greve dos mineiros britânicos no inverno de 1973-74 forçou a renúncia do governo Tory (Partido Conservador); em abril de 1974, caiu a ditadura fascista de Portugal, seguida pela queda da ditadura militar do General Papadopoulos na Grécia. Um mês depois, em agosto de 1974, Richard Nixon renunciou à presidência; menos de um ano depois, entre abril e maio de 1975, a guerra imperialista no Vietnã e na Camboja chegou a um fim humilhante.

Mas esse levante foi prejudicado pelas políticas contra-revolucionárias das burocracias stalinistas e social-democratas no movimento internacional dos trabalhadores. Até mesmo no Irã, onde as greves dos petroleiros ao fim de 1978 foram decisivas no enfraquecimento do regime do Xá (que havia sido instalado pela CIA em 1953), as políticas stalinistas preveniram a vitória de uma revolução socialista. Ao invés disso, o poder caiu nas mãos das forças religiosas e nacionalistas. As traições das lutas da classe trabalhadora providenciaram ao imperialismo o tempo necessário para planejar sua própria estratégia contra-revolucionária e ir à ofensiva contra a classe trabalhadora.

Enquanto a maré política virava, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores da Grã-Bretanha (WRP) falhou em fazer uma nova análise da situação e introduzir as mudanças necessárias em sua própria prática. Cliff Slaughter havia avisado diversas vezes às seções do CIQI: “Quando suas perspectivas não forem confirmadas, é necessário revê-las.” Porém, o WRP não seguiu seu próprio conselho e foi incapaz de adaptar sua prática à virada na situação política. Quando as perspectivas para a revolução socialista se apagaram, o WRP buscou manter sua força organizacional na base de relações novas e oportunistas com seções da burocracia trabalhista britânica e movimentos nacionais burgueses na África e no Oriente Médio. Voltando suas costas às lições da longa luta contra o revisionismo do CIQI, o WRP desenvolveu uma linha política que se assemelhava cada vez mais com aquela dos pablistas. E, além disso, em sua fixação unilateral pelo que foi percebido por Healy como sendo os imperativos organizativos do WRP, a linha da seção britânica assumiu uma orientação cada vez mais nacionalista. O trabalho do CIQI como um partido internacional ficou cada vez mais subordinado às atividades de “construção do partido” nacional do WRP.

A crise que surgiu dentro do WRP no verão e outono de 1985 era o resultado inevitável de seu prolongado afastamento dos princípios trotskistas e da desorientação política conseqüente daquela traição. O WRP chegara a valorizar mais suas diversas alianças com burocratas trabalhistas, nacionalistas burgueses e radicais pequeno-burgueses do que as relações fraternas com seus camaradas e co-pensadores dentro do CIQI. Até mesmo no outono de 1985, enquanto o partido se encontrava entre os destroços provocados por suas políticas desastrosas, membros do WRP se vangloriavam descaradamente de seus novos laços com várias tendências antitrotskistas. Em um encontro público em Londres, Slaughter ofereceu sua mão ostensivamente a Monty Johnstone, um dos representantes mais notórios do Partido Comunista Britânico.

Por debaixo dessas ações se encontrava uma análise completamente falsa da situação política internacional. Em nenhum momento ocorreu a qualquer dirigente do WRP que as diversas organizações reformistas e oportunistas que eles cortejavam estavam elas mesmas à beira de um desastre. Tendo abandonado o trabalho sério e sistemático sobre as perspectivas internacionais, o WRP havia falhado completamente em tomar ciência das novas tendências na economia capitalista mundial, quanto mais em considerar suas implicações no desenvolvimento da luta de classes internacional.

Após o rompimento com o WRP em fevereiro de 1986, o Comitê Internacional enfrentou duas tarefas teóricas cruciais e inter-relacionadas. A primeira foi fazer uma análise detalhada das raízes da traição ao trotsquismo perpetrada pelo WRP e responder a seu ataque à história da Quarta Internacional. A segunda era de retomar o trabalho crítico de perspectivas que havia sido abandonado pelo WRP. A crítica ao WRP e a nova avaliação da história da Quarta Internacional possibilitou que o Comitê Internacional restabelecesse suas ligações históricas com a herança programática inteira do movimento trotskista, considerada desde a fundação da Oposição de Esquerda em 1923. Ao mesmo tempo, a retomada do trabalho sistemático sobre as perspectivas internacionais era necessária a fim de reorientar o trabalho do CIQI de acordo com as tendências objetivas reais de desenvolvimento da economia capitalista mundial.

Na quarta plenária do Comitê Internacional em julho de 1987, a seguinte questão foi colocada: de quais tendências do desenvolvimento da economia mundial e da luta de classes internacional a Quarta Internacional é necessariamente uma expressão? Considerada historicamente, havia relações profundas entre o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo em escala mundial, seu impacto correspondente no crescimento da classe trabalhadora como uma força social, e as formas políticas através das quais essas tendências socioeconômicas objetivas encontravam expressão no desenvolvimento histórico do movimento marxista internacional.

A fundação da Primeira Internacional em meados de 1860 foi a antecipação política da emergência de um proletariado internacional nas bases da expansão da indústria capitalista e do comércio em escala mundial. As formas ainda imaturas desse processo social e econômico foram insuficientes para sustentar os esforços da Primeira Internacional, que parou com suas atividades práticas no meio da década de 1870. No entanto, dentro de menos de duas décadas, o crescimento extraordinariamente rápido da indústria na Europa ocidental e na América do Norte estimulou o desenvolvimento de um novo proletariado industrial e, junto com isso, seu movimento em direção a uma organização política independente. Ao mesmo tempo, a expansão do sistema colonial atraía massas no mundo todo ao vértice do desenvolvimento capitalista internacional.

A fundação da Segunda Internacional em 1889 refletiu esse novo estágio no desenvolvimento capitalista e seu crescimento resultante no tamanho e na significância econômica da nova classe trabalhadora industrial. Durante o próximo quarto de século, o desenvolvimento da Segunda Internacional foi ligado à expansão da indústria capitalista. Enquanto esse processo era, em essência, internacional, a forma dominante de sua expressão era o crescimento das poderosas economias industriais nacionais e a emergência de fortes organizações trabalhistas nacionais. De fato, a Segunda Internacional mantinha a perspectiva de solidariedade da classe trabalhadora internacional, mas o trabalho prático de suas seções era profundamente embasado nos fundamentos da indústria nacional, e, quando adentrou a segunda década do século XX, ela falhou em considerar a medida em que a crescente ameaça do militarismo imperialista refletia a erosão da soberania das economias nacionais sob pressão da economia mundial.

O estourar da 1ª Guerra, o colapso da Segunda Internacional e a emergência da Terceira Internacional foram as expressões fundamentais dessa mudança. Como explicou Trotsky:

“Em 4 de Agosto de 1914 soou a hora final dos programas nacionais de todos os tipos. O partido revolucionário do proletariado só pode se basear em um programa internacional correspondente ao caráter da época atual, a época do mais alto desenvolvimento e colapso do capitalismo. Um programa comunista internacional não é de maneira alguma a soma total de programas nacionais nem um amálgama de suas características comuns. O programa internacional deve proceder diretamente de uma análise das condições e tendências da economia mundial e do sistema político mundial levados em consideração como um todo em todas as suas contradições e conexões, isto é, com a interdependência mutuamente antagônica de suas partes separadas. Na época presente, a um nível muito maior do que no passado, a orientação nacional do proletariado deve e pode seguir somente uma orientação mundial e não vice-versa. Aqui jaz a diferença básica e primordial entre o internacionalismo comunista e todas as variedades de nacional-socialismo” (The Third International After Lenin (London, 1974), pp. 3-4).

Quando Trotsky escreveu essas palavras em 1928, a concepção de que a economia mundial formava a base essencial sobre a qual a estratégia revolucionária deveria se desenvolver já se encontrava sob ataque dentro da Internacional Comunista. O programa stalinista do socialismo em um só país era a antípoda do internacionalismo que constituía a base estratégica da conquista de poder pelo Partido Bolchevique em 1917. A concepção stalinista de que o desenvolvimento da economia nacional soviética seria o determinante decisivo e primordial do sucesso do projeto socialista na URSS representou um retorno à posição nacionalista que havia prevalecido na Segunda Internacional. É bom notar que a perspectiva de Stalin encontrava uma resposta dentro das lideranças de muitas seções da Internacional Comunista, que dividiam sua concepção de que as condições nacionais imediatas encontradas pela classe trabalhadora em cada país específico deveriam formar o verdadeiro ponto de partida da atividade prática.

Dentre aqueles que não apenas defendiam a orientação nacionalista de Stalin, mas também buscavam justificá-la teórica e politicamente estava Antônio Gramsci.”Com razão,” escreveu ele,”a linha de desenvolvimento é em direção ao internacionalismo, mas o ponto de partida é ‘nacional’ e é desse ponto de partida que se deve começar” (Prison Notebooks (New York, 1971), p. 240). Sob a luz da história subseqüente do Partido Comunista da Itália, o qual resgatou a burguesia e o capitalismo italiano após o colapso do regime de Mussolini e se transformou em um partido nacional reformista par excellence, as implicações políticas da posição de Gramsci ficaram explícitas. Não é surpresa que os stalinistas italianos abraçaram a memória de Gramsci, que morrera nos anos 30 em decorrência de abusos sofridos nas mãos dos fascistas, e o honraram como sua inspiração teórica.

A Quarta Internacional foi fundada por Trotsky em resposta à degeneração stalinista da 3ª Internacional. A explosão da 2ª Guerra imperialista demonstrou da maneira mais trágica a primazia da economia mundial e da política mundial. No entanto, paradoxalmente, a restabilização do capitalismo depois da guerra, nas premissas de Bretton woods, levou a um ressurgimento do programa de reformismo nacional no movimento trabalhista internacional.

A renovada expansão do comércio mundial, o crescimento nos PIBs de economias capitalistas nacionais e até mesmo o extraordinário aumento na qualidade de vida na União Soviética durante os anos 50 e 60 trouxeram aos partidos reformistas, incluindo às organizações stalinistas, um novo sopro de vida. Mas por mais impressionante que fosse o crescimento nos PIBs e até mesmo nos padrões de vida durante o período, esse período provou não ser nada além de uma prolongada bonança do reformismo nacional. A quebra do sistema Bretton Woods e o início de uma prolongada crise econômica caracterizada por surtos decorrentes de inflação, recessão, desemprego crescente e uma queda contínua da lucratividade, junto com uma virada da burguesia, mais notável nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, em contra-ofensiva à classe trabalhadora, levou à falência total do reformismo nacional como uma política viável.

Foi sob essas condições, no verão de 1987, que o Comitê Internacional começou as preparações para fazer uma nova resolução de perspectivas. Para responder à questão posta no início dessa discussão na quarta plenária, o Comitê Internacional dirigiu sua atenção ao estudo das novas formas de produção capitalista que emergiram durante o fim dos anos 70 e início dos 80, facilitadas pelos desenvolvimentos na tecnologia de computação e pela disponibilidade de formas mais rápidas e baratas de transporte e comunicação. A criação da corporação transnacional representou um avanço qualitativo na integração global da produção e nas finanças capitalistas. Esse desenvolvimento elevou a um nível de tensão sem precedentes a contradição histórica entre economia mundial e o sistema de Estado nacional dentro do qual o capitalismo era enraizado historicamente, o qual permanece como a unidade básica de organização política.

Uma solução revolucionária a essa crise só poderia ser encontrada nas bases do internacionalismo socialista, isto é, através da unificação prática e política da classe trabalhadora internacional. Nenhum dos partidos e organizações de orientação nacional existentes, sejam eles stalinistas, social-democratas ou trabalhistas reformistas, poderia solucionar a crise. Realmente, a interminável série de derrotas que eles haviam sofrido nos períodos recentes advinha inevitavelmente da total impotência de sua orientação nacional em face das novas formas de organização capitalista internacional. Somente o programa internacional do Comitê Internacional correspondia ao desafio imposto à classe trabalhadora pela integração global do capitalismo.

Na Resolução de perspectivas adotada em agosto de 1988, o Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI) identificou os seguintes elementos críticos de uma crise revolucionária emergente:

1) A integração do mercado mundial e a integração global do processo de produção sem precedentes históricos, das quais a corporação transnacional é a expressão institucional. Esse processo global intensificou a contradição fundamental entre economia mundial e o sistema de Estado nacional.

2) A perda por parte dos Estados Unidos de sua hegemonia econômica mundial. Essa foi uma mudança histórica que encontrou sua melhor expressão na transformação dos EUA de nação credora para nação devedora. O precipitado declínio econômico dos Estados Unidos foi a causa essencial da deterioração dos níveis de vida de largas camadas da classe trabalhadora.

3) A intensificação de conflitos inter-imperialistas, uma vez que tanto a Europa como o Japão ameaçavam diretamente a posição dos Estados Unidos no mercado mundial.

4) A rápida expansão das economias do Sudeste Asiático, que havia levado à formação de destacamentos inteiramente novos de proletariado industrial. Tendências similares estavam em curso na África e na América Latina. Do ponto de vista global, isso significava um enorme fortalecimento do potencial econômico e do poder social da classe trabalhadora.

5) O contínuo empobrecimento de grande parte do “Terceiro Mundo” e a total falência das estratégias da burguesia nacional nesses países.

6) A desestabilização da ordem política do pós 2ª Guerra, a qual decorreria da guinada a políticas de restauração capitalista por todos os contingentes de burocracia stalinista (URSS, Leste Europeu e China).

Quase 17 anos se passaram desde a publicação dessa análise. A elaboração de uma nova perspectiva mundial requer que seja feita uma avaliação da perspectiva elaborada em 1988. Primeiramente deve-se dizer que uma perspectiva não é uma nota promissória, é um prognóstico, e, como apontou Trotsky, quanto mais concreto o prognóstico, mais condicional ele é.

Como diz um ditado, previsões são extremamente difíceis de se fazer, principalmente sobre o futuro! Aqueles que querem o futuro previsto com exatidão infalível devem se dirigir ao oráculo mais próximo.

Não obstante, tendo feito essas advertências, acredito que a análise de 1988 se mantém fortemente. Iniciarei pelo último dos elementos essenciais da crise mundial que foram identificados pelo CIQI em 1988: as conseqüências revolucionárias e desestabilizadoras que antecipamos como resultantes da guinada das burocracias stalinistas a políticas pró-mercado. Permitam-me destacar que os alertas feitos na resolução de perspectivas de 1988 (e em outros documentos da época), de que as políticas implementadas por Gorbachov sob a bandeira da glasnost e da perestroika representaram um estágio de apogeu das políticas contra-revolucionárias do stalinismo, eram completamente opostas ao apoio recebido pelo último líder soviético por parte dos teóricos pablistas.

Ernest Mandel, que em 1953 foi o co-pensador mais próximo de Michel Pablo e que depois se transformou no principal teórico do movimento revisionista, saudou Gorbachov como sendo o político mais brilhante do mundo e denunciou como “absurdas” as afirmações de que suas políticas eram direcionadas à restauração do capitalismo. O protegido de Mandel, Tariq Ali, foi tão longe a ponto de dedicar um livro a Boris Yeltsin. A miopia dos revisionistas talvez possa ser, pelo menos um pouco, desculpada quando notamos que a burguesia internacional não possuía uma visão tão apurada assim em suas apreciações acerca das conseqüências das políticas de Gorbachov. Todos eles confessaram em seguida que foram completamente tomados de surpresa pela repentina queda dos regimes stalinistas no Leste Europeu e na URSS.

Revendo a análise feita pelo CIQI da crise dos regimes stalinistas, pode-se dizer sem medo de contestação que elas anteciparam as reviravoltas de 1989-1991, as quais incluem a revolta de massas dos estudantes e trabalhadores na China que culminou com o massacre da Praça da Paz Celestial. O que não poderia ser previsto era o resultado político imediato dessa crise, ao longo da qual ficou claro que décadas de repressão stalinista, dirigida acima de tudo sobre tendências socialistas na classe trabalhadora e intelligentsia, haviam deixado cicatrizes profundas na consciência das massas. Pouco restava da perspectiva socialista que uma vez inspirou largas camadas da classe trabalhadora. Com o encorajamento das burocracias, os protestos de massas no Leste Europeu e depois na URSS foram canalizados a uma linha pró-capitalista. Portanto, o resultado inicial das revoltas anti-stalinistas foi o estabelecimento de regimes restauracionistas.

Porém, isso não invalida a perspectiva que havia sido adiantada pelo CIQI, principalmente quando consideramos ramificações históricas mais abrangentes dos eventos de 1989 a 1991. O quê, na análise final, levou à repentina dissolução dos regimes stalinistas no Leste Europeu e na URSS?

Paradoxalmente, esses regimes provaram ser os pior adaptados ao impacto das tendências econômicas que o Comitê Internacional havia identificado em sua análise da crise econômica mundial, nomeadamente, da aceleração na globalização econômica. Não foi o atraso das economias do Leste Europeu e da União Soviética, e sim sua crescente complexidade que constituiu os moldes de auto-suficiência nacional autárquica cada vez mais insustentável. Mas quanto mais essas economias buscaram, sob pressão da necessidade, acesso aos recursos do mercado mundial (através da expansão do comércio, do encorajamento a investimentos internacionais e da busca de créditos), mais elas expunham suas empresas a pressões impiedosas para as quais estavam mal preparadas.

A reação inicial da classe trabalhadora soviética às políticas pró-mercado de Gorbachov foi uma série de greves altamente politizadas, principalmente dos mineiros. Cada vez mais temerosos de um movimento à esquerda da classe trabalhadora, as burocracias stalinistas fizeram o que puderam para assegurar que a queda de seus regimes colocaria o poder nas mãos de setores pró-capitalistas. E nisso eles foram bem sucedidos. Mas o resultado político das reviravoltas não altera o fato de que sua origem econômica era latente nos processos postos em movimento pela globalização.

A questão da forma política não é insignificante. Não somos indiferentes às conseqüências políticas da queda dos regimes stalinistas. A restauração do capitalismo na Europa do Leste, na antiga URSS e na China teve um impacto colossal no desenvolvimento da política mundial e, devemos acrescentar, na economia mundial nos anos 90 e na primeira década do século XXI. Para apreciarmos a magnitude das conseqüências da restauração do capitalismo, temos apenas que nos perguntar como seria o mundo hoje se os eventos no Leste Europeu, URSS e China tivessem culminado em revoluções políticas que colocassem no poder regimes democráticos e socialistas da classe trabalhadora. No mínimo, eu duvidaria muito que teríamos assistido a exuberância especulativa que alimentou o aumento nos valores das ações em Wall Street e em outros mercados acionistas durante os anos 90. Não há dúvidas que a queda da União Soviética fez crescer, ao menos temporariamente, a autoconfiança da burguesia internacional e americana. Principalmente para os Estados Unidos, o fim da URSS abriu caminhos vastos e novos ao exercício de seu poderio militar.

Porém, se considerarmos o estado do capitalismo mundial e a posição dos Estados Unidos dentro do sistema de outros elementos da crise internacional identificada no documento de 1988, e dentro do contexto ainda mais abrangente da situação pós Breton Woods tomada como um todo, um quadro mais realista se colocará à nossa vista. Todos os elementos de crise aos quais apontou o CIQI em 1988 ainda persistem em 2005. Na verdade, eles se tornaram mais intensos e perigosos.

Vista historicamente, a queda da URSS não curou as profundas doenças internas do sistema capitalista mundial e nem criou um panorama para seu desenvolvimento progressivo. Pelo contrário, ela abriu novas áreas de expansão para suas malignidades fatais. Longe de uma diminuição nas conseqüências da dissolução da URSS, a última década e meia viu uma intensificação tremenda nas contradições entre os inevitáveis processos de globalização econômica e os imperativos absolutos do arcaico sistema de Estado-Nação. Quanto aos conflitos históricos entre poderes imperialistas maiores, estes foram exacerbados pela queda da URSS, cuja existência possuía um dos fatores que, desde o fim da Segunda Guerra, haviam restringido a tendência a conflitos entre Estados capitalistas. A última década e meia também presenciou um massivo avanço no tamanho e poder da classe trabalhadora asiática.

O documento de 1988 colocou grande ênfase no declínio econômico dos Estados Unidos e na perda resultante de sua posição hegemônica. Esse processo não foi revertido durante os últimos 17 anos, mesmo apesar das tentativas dos Estados Unidos em atingir tal reversão através do uso do poder militar. De fato, a dependência cada vez mais inevitável da violência para atingir seus objetivos globais reflete não somente um declínio no poder econômico, mas um estado de profunda desorientação da elite americana ávida por dinheiro.

Eu havia me referido anteriormente à quebra do sistema Bretton Woods. Esse evento, eu havia explicado, foi um ponto de virada no destino do capitalismo pós-guerra. O fim de um sistema baseado na conversibilidade do dólar ao ouro revelou os limites do poderio econômico do capitalismo americano e colocou em movimento um prolongado processo de declínio econômico. Um exame da posição econômica do capitalismo americano, que se concentra na dimensão das dívidas e déficits dos EUA e não no poder de fogo de seu arsenal militar, indica claramente que estamos agora em um estágio bem avançado da crise que foi aberta com o colapso do sistema Bretton Woods em agosto de 1971.

Os índices objetivos do declínio americano

Durante este ano, nos círculos financeiros internacionais se expressaram preocupações crescentes sobre o estado da economia americana, em especial sobre os enormes déficits em conta corrente e na posição do investimento internacional líquido (NIIP), e sobre o impacto desses déficits no valor do dólar americano. A seriedade dessas preocupações levantadas e a queda no dólar refletem o reconhecimento de que esses problemas não são somente americanos, esses problemas são mundiais.

Mesmo após a passagem de quase 35 anos, a burguesia mundial não foi capaz de encontrar uma alternativa estável ao Bretton Woods. O sistema prevalecente de taxas flutuantes nunca passou de uma série de ajustes ad hoc, perpetuamente vulneráveis a sérias turbulências no câmbio internacional. Antes de 1971, o dólar americano garantia estabilidade financeira mundial. Desde então, ele é o principal agente de instabilidade financeira. Essa situação perigosa deriva do fato de que o dólar permanece, apesar das eternas flutuações e de seu valor nos mercados cambiais mundiais, a maior moeda de reserva mundial. Em relação a esse fato, várias observações devem ser feitas:

Primeiramente, a significância crucial das flutuações nas moedas e que estas expressam um desequilíbrio fundamental dentro de uma economia mundial fraturada pela persistência do Estado nacional. Uma organização econômica racional da economia mundial seria aquela vastamente estimulada por uma única e universalmente válida moeda mundial estável. Isso foi reconhecido na década de 40 pelos representantes burgueses com visão de maior alcance. Franklin Delano Roosevelt brincou com a idéia de propor o estabelecimento de uma moeda mundial, a qual propôs que se chamasse unitas, e pediu a seu conselheiro econômico que tinha uma queda pelo socialismo, Harry Dexter White, para que pensasse em planos para sua realização. Mas Roosevelt, sempre realista, compreendeu que essa expressão particular de seu altruísmo social instintivo não era compatível com os interesses do capitalismo americano. A proposta nunca viu a luz do dia. Significantemente, ao mesmo tempo, o economista britânico John Maynard Keynes estava desenvolvendo seu próprio esquema de uma moeda mundial, a qual chamou de bancor. Mas sem apoio americano, ela foi o que os britânicos chamariam de “algo fadado à derrota”. S Sob o capitalismo, a moeda nacional funciona como a emissária da burguesia de cujo Estado ela é emitida. Qualquer relação entre a política monetária nacional da qual tal moeda é uma representante e o bem maior da economia global é certamente bem-vinda, mas, em última análise, não deve ser esperada.

Em segundo lugar, os Estados Unidos tirou e continua a tirar uma enorme vantagem econômica da posição privilegiada que o dólar ocupa desde 1947 como a principal moeda de reserva mundial. Na medida em que o dólar é empregado como meio de transações financeiras internacionais, e é portanto intencionalmente acumulado por bancos centrais de todo o mundo, os Estados Unidos são livres dos obstáculos fiscais e financeiros que são impostos a todos os outros países. É-lhes permitido administrar déficits em conta corrente para muito além do que seria considerado tolerável para qualquer outro país. No entanto, até mesmo para os EUA, chega-se a um ponto no qual o tamanho do déficit se torna uma questão preocupante e até mesmo alarmante. Um trilhão em dívidas aqui e um trilhão lá e, de repente, estamos falando de “dinheiro de verdade”. Aí então, até os presidentes dos bancos centrais começam a passar noites em branco preocupados com o valor dos dólares acumulados em seus cofres.

Em terceiro lugar, a crise atual do dólar chega em um momento no qual a soberania global da moeda americana encara um desafio sem precedentes na história, na forma do euro. O economista vencedor do prêmio Nobel Robert Mundell escreveu recentemente que os dois eventos mais importantes na economia mundial durante os últimos 50 anos foram, primeiro, a queda do sistema Bretton Woods em 1971, e segundo, o lançamento do euro. Agora mesmo, uma porcentagem substancial e rapidamente crescente das transações internacionais financeiras está denominada em euros, o que faz crescer as pressões financeiras sobre os Estados Unidos.

Enquanto maníacos iludidos de direita como o colunista Charles Krauthammer celebram a emergência de um mundo unipolar, dominado pelos Estados Unidos, os mercados financeiros mundiais se tornaram, definitivamente, bipolares. E enquanto outro estrategista da hegemonia americana, Walter Russel Meade, ignora com desdém as objeções européias à guerra no Iraque e prevê que os Estados Unidos irão lidar com os obstrucionistas franceses no tempo certo, além de observar cinicamente que “a vingança é um prato que se serve frio”, se esquece de considerar que os Estados Unidos poderão ser obrigados a pagar pelos ingredientes desse prato em euros.

O surgimento do militarismo americano é profundamente conectado a essas tendências econômicas desfavoráveis. Através do uso de poder militar, os Estados Unidos esperam ganhar vantagens geo-estratégicas que possam ser usadas para finalizar ou reverter o declínio em sua influência econômica. No entanto, os custos de manutenção de um arsenal militar massivo e de financiamento de suas operações militares globais acabam por exacerbar o problema financeiro que subjaz a isso. Os enormes déficits orçamentários contribuem para a deterioração dos déficits em conta corrente, para um maior enfraquecimento do dólar e para a maior atratividade do euro como uma alternativa. Durante os últimos três anos, a taxa de câmbio do dólar decaiu em relação ao euro aproximadamente 35% [ver quadro 1]. Portanto, os Estados Unidos estão encurralados em um dilema político para o qual não conseguem encontrar uma saída racional.

Quadro 1. Número de euros para um dólar (médias mensais), 2001-2004. Fonte: www.x-rates.com.

Em relação ao euro, deve-se afirmar que sua atratividade é de um caráter relativo, ao invés de absoluto. O euro só aparece bem quando posto ao lado de seu feioso irmão mais velho. O projeto de unidade européia, da qual o euro é o produto, é rachado de contradições internas.

Vejamos agora os números: O déficit comercial dos Estados Unidos totalizou 420 bilhões de dólares em 2002, excedeu 500 bilhões em 2004 e espera-se que o déficit passará para muito além de 600 bilhões em 2005 [ver quadro 2]. A posição do investimento internacional líquido (NIIP) dos Estados Unidos - “o estoque total de concessões estrangeiras acumuladas sobre os Estados Unidos (subtraindo os débitos e patrimônios) menos o estoque de concessões americanas sobre o restante do mundo” [1] - aumentou de -360 bilhões em 1997 para -2,65 trilhões em 2003. Ainda não temos os números finais, mas espera-se que a NIIP estará ao redor de -3,3 trilhões em 2004. Esse número representa 24% do produto interno bruto (PIB) dos Estados Unidos. Devemos nos lembrar que a NIIP americana era positiva até 1989. Até 1995, a posição do investimento internacional líquido era de apenas -306 bilhões, mas ao final de 1999 havia alcançado -1 trilhão. A hemorragia deve continuar e os Estados Unidos continuará a administrar déficits enormes em conta corrente, o que fez com que tivessem que emprestar 665 bilhões de dólares em 2004 [ver quadro 3]. Ninguém, com a possível exceção de Bush e seus seguidores, acredita que esta situação se mantenha por muito tempo.

Quadro 2. Exportações e importações dos EUA, 1960-2002. Fonte: US Bureau of Economic Analysis

Quadro 3. Balanços de conta corrente dos EUA, 1960-2002. Fonte: US Bureau of Economic Analysis.

O déficit em conta corrente é decorrente do aumento extraordinário no déficit orçamentário federal [Ver quadro 4].

Quadro 4. Déficit/Superávit orçamentário do governo americano, 1972-2003. Fonte: Congressional Budget Office. Números a partir de 2003 são projetados a partir de julho de 2003.

Permitam-me citar um artigo de co-autoria do secretário do tesouro, Robert Rubin e dos notáveis economistas Allen Sinai e Peter Orszag:

“O orçamento federal dos EUA está em um caminho insustentável. Na ausência de qualquer mudança significativa em sua política orçamentária, os déficits do governo federal devem chegar a 5 trilhões de dólares na próxima década. Tais déficits farão com que as dívidas governamentais aumentem significantemente em relação ao PIB. A partir de então, quanto mais a geração do “baby boom” (nascidos de 1945 a 1964) alcançar a idade de aposentadoria e requerer serviços sociais e hospitalares, os déficits governamentais tendem a aumentar mais ainda. A escala dos desequilíbrios orçamentários projetados pela nação está agora tão grande que o risco de severas conseqüências adversas deve ser levado muito a sério, apesar de ser impossível prever quando tais conseqüências possam ocorrer...

“A perda de confiança entre investidores nacionais e estrangeiros (conseqüente desses déficits) poderia afastar carteiras dos ativos em dólar e assim fazer pressão para que as taxas de juros domésticas subissem”. Essas mesmas forças poderiam levar investidores e negócios a reduzirem o uso do dólar como moeda mundial principal para transações internacionais. Isso, por sua vez, limitaria a habilidade dos Estados Unidos financiarem déficits em conta corrente através de passivos em dólar e portanto aumentar a exposição líquida da nação a mudanças substanciais nas taxas de câmbio.

“Sob esse tipo de cenário, o aumento nas taxas de juros, a depreciação do dólar e o declínio na confiança dos investidores reduziriam quase certamente os preços das ações e da riqueza familiar, além de aumentar os custos de financiamento às empresas. Esses efeitos poderiam então se espalhar dos mercados financeiros à economia real.” [2]

Um estudo publicado pelo Escritório Orçamentário do Congresso (CBO), citado por Rubin, Sinai e Orszag em seu relatório, apresentou o seguinte cenário apocalíptico:

“Investidores internacionais poderão parar de investir em títulos americanos, a taxa de câmbio do dólar poderá afundar, as taxas de juro poderão subir, os preços aos consumidores poderão aumentar muito ou a economia poderá contrair-se fortemente. Em meio à antecipação dos lucros em queda e da inflação e taxas de juros em ascenso, os mercados financeiros poderão entrar em colapso e os consumidores reduzirem subitamente o consumo. Além disso, problemas econômicos nos Estados Unidos poderiam vazar ao restante do mundo e enfraquecer seriamente as economias dos parceiros comerciais americanos.

“Uma política de inflação mais alta poderia reduzir o valor real das dívidas governamentais, mas a inflação não é uma estratégia propícia em longo prazo para lidar com déficits orçamentários persistentes... Se o governo continuasse a imprimir dinheiro para financiar o déficit, a situação levaria eventualmente à hiperinflação (como aconteceu na Alemanha dos anos 20, Hungria nos anos 40, Argentina nos anos 80 e Iugoslávia nos anos 90)... Uma vez que um governo perde a credibilidade nos mercados financeiros, reconquistá-la pode se provar difícil.”

Ao apresentarmos esses números e citarmos a opinião de experts, não é nossa intenção afirmar que qualquer uma das possibilidades sugeridas acima devam se confirmar precisamente da forma indicada pelo relatório do CBO. Deve-se admitir, apesar de toda evidência contrária, que ainda há setores influentes da elite americana que não estão dispostos a seguir com a administração de Bush enquanto ela caminha cegamente para o abismo. Antes que o déficit em conta corrente chegue a 50% ou 70% do PIB e o valor do dólar caia mais 30% ou 40%, além dos 35% de queda já sofridos nos últimos 3 anos, certos setores poderosos da burguesia intervirão para exigir uma mudança no curso. Mas qual alternativa é possível? Não interessam quais políticas alternativas são propostas, todas carregam com si sérias conseqüências. Além do mais, todas as políticas alternativas, sem mencionar a continuação do curso atual, devem levar a ataques mais profundos nos níveis de vida e nas condições sociais da classe trabalhadora dos Estados Unidos.

Nunca se deve esquecer que o processo histórico fundamental do qual esses índices são uma expressão é o prolongado declínio do capitalismo americano. O destino do dólar está inevitavelmente ligado ao poder produtivo e à posição mundial da indústria americana. O auto-enriquecimento repugnante da classe dominante - de fato, o que o faz tão particularmente repugnante - é que o processo de fazer dinheiro foi ficando cada vez mais divorciado da capacidade produtiva real da indústria americana. O capital americano vasculha o mundo atrás de mão-de-obra e matéria-prima baratas enquanto a base manufatureira de sua indústria se deteriora e os níveis de vida de amplas camadas da classe trabalhadora estagnam ou se deterioram.

Quais, então, são nossos prognósticos políticos? A classe dominante americana não pode se livrar desta crise com medidas pacíficas, e isso se aplica não somente à sua política internacional, mas dentro dos Estados Unidos também. Além das fronteiras dos EUA, as ações do imperialismo americano se tornarão ainda mais precipitadas e brutais. O fato extraordinário de o governo americano ter proclamado, sem pudor, que a guerra é um meio aceitável e apropriado para se atingir metas geo-estratégicas só pode ser entendido como expressão de um conhecimento muito nítido de que não há outra forma de os Estados Unidos compensarem sua perda da posição proeminente que ocupavam nas décadas seguintes à 2ª guerra.

Se os EUA querem manter sua posição de poder imperialista dominante, eles devem assegurar seu acesso às fontes essenciais de petróleo e gás natural no Oriente Médio e Ásia. Não só isso, como também devem se colocar em uma posição na qual tenham a palavra final na alocação desses recursos críticos a outros poderes influentes, que incluem não só a Europa e Japão, mas também China e Índia. E, finalmente, devem certificar-se de que o preço do petróleo seja cotado em dólares, e não em euros.

Mas a agenda sanguinária do imperialismo americano requer o re-direcionamento de recursos financeiros essenciais da área social da economia para a área militar. Isso não pode ser atingido sem uma séria exacerbação das já preocupantes tensões sociais existentes nos Estados Unidos. O que a administração de Bush pode fazer? Não há nenhuma resposta boa e fácil: Mutatis mutandis, levando-se em consideração as evidentes diferenças, a situação que confronta a administração de Bush quando esta adentra o quarto ano de sua falsa e auto-proclamada “guerra ao terror”, é assustadoramente parecida com a que confrontava o regime nazista no fim dos anos 30, às vésperas da 2ª guerra. Como explicou um perspicaz historiador:

“... do ponto de vista [nazista], parecia não haver qualquer problema de política econômica ou social em 1938/39 para o qual houvesse soluções simples ao alcance das mãos. As preparações forçadas para a guerra desde o início de 1938 haviam esgotado as capacidades e as reservas de todos os lados... As dificuldades convergiram em uma crise geral que abraçava todo o sistema econômico e governamental; no cerne disso encontrava-se a questão de como o produto social deveria ser dividido entre as necessidades civis e militares. Em outras palavras, o governo se encontrava diante do problema político agudo de quanto sacrifício poderia exigir do povo em troca de rearmamentos e guerra.” [3]

Se isso foi um problema num país onde a burguesia havia conduzido ao poder a ditadura mais brutal e impiedosa que o mundo havia visto, o dilema político enfrentado pela administração de Bush é ainda mais agudo. Já existe uma grande oposição popular a seu governo. O próprio fato de que sua administração não encontra meios de expressão dentro das estruturas políticas existentes transmite a essa oposição social latente um caráter excepcionalmente explosivo.

A tarefa do Partido da Igualdade Socialista deve ser se basear na lógica da crise econômica mundial, antecipar uma renovação da luta social nos Estados Unidos e orientar-se pela força revolucionária da sociedade americana - a classe trabalhadora. Para aqueles que não conhecem a história dos conflitos sociais nos Estados Unidos, dos anos 1870 ao fim dos anos 1980, e que cresceram e amadureceram em um ambiente social no qual greves, confrontos com a polícia, atos de massas e outras formas típicas da luta de classes como tradicionalmente praticadas nos Estados Unidos por mais de um século são quase desconhecidas, essa insistência no papel revolucionário da classe trabalhadora pode parecer utópica, quando não totalmente estranha. Mas a experiência histórica demonstra que a imobilidade, ou, usando palavras mais apropriadas, a indiferença e a estagnação da última década e meia representam uma divergência absoluta dos padrões originais da história social americana.

Se estudarmos os índices mais básicos de conflito de classes nos Estados Unidos - estatísticas de greve - ficamos completamente chocados com o desaparecimento virtual de ações de massas durante as últimas duas décadas [ver quadros 5, 6 e 7]. O número de trabalhadores envolvidos em paralisações, o número de dias de trabalho perdidos e, mais importante, a porcentagem do total de tempo de trabalho perdido em decorrência de greves caiu a ponto de agora ser quase insignificante. Esses números são completamente atípicos em relação ao padrão básico de relações de classe enquanto elas se desenvolviam nos EUA entre 1870 e 1980.

Quadro 5. Número de trabalhadores envolvidos em paralisações com mil ou mais trabalhadores, 1947-2003. Fonte: US Bureau of Labor Statistics.

Quadro 6. Número de dias de trabalho ociosos devido a paralisações envolvendo mil ou mais trabalhadores, 1947-2003. Fonte: US Bureau of Labor Statistics.

Quadro 7. Fração de tempo de trabalho perdido em decorrência de paralisações envolvendo mil ou mais trabalhadores, 1947-2003. Fonte: US Bureau of Labor Statistics.

Qual explicação deve ser oferecida para o surpreendente declínio nos índices mais primários de conflito social nos Estados Unidos? Ou a classe trabalhadora americana se tornou completamente indiferente à queda em sua posição social e o enorme crescimento da desigualdade social durante as últimas duas décadas foi atingido sem influenciar de qualquer forma tensões e conflitos na sociedade americana, ou a estrutura política existente e as formas de organização através das quais os trabalhadores tradicionalmente expressavam seu descontentamento social trabalharam de forma a suprimir todas as manifestações de raiva da classe trabalhadora. A última é uma explicação muito mais plausível. É também a explicação correta.

A emergência da classe trabalhadora como uma força política revolucionária e independente não é só uma questão de organização, mas de consciência social, perspectiva política e visão teórica que enxergue dentro das leis da história e do modo de produção capitalista. Durante as décadas na qual gozou de influência expressiva nos Estados Unidos, o movimento trabalhista se devotou a extirpar todos os traços desses componentes intelectuais essenciais de consciência de classe. Mais do que isso, seu provincianismo nacional, combinado com uma devoção servil ao Partido Democrata, bloqueou qualquer resposta efetiva à ofensiva capitalista da década de 80 e às novas condições econômicas criadas pela globalização capitalista.

A renovação de intensos conflitos sociais e de classe nos Estados Unidos e internacionalmente é inevitável. Nossa tarefa agora é preparar-nos para a inevitável renovação do conflito de classes em escala mundial através da elaboração de uma perspectiva e um programa internacional nos quais a classe trabalhadora deva basear suas lutas, trabalhando energicamente para ampliar a influência do Site Socialista de Interligação Mundial, apresentando a uma nova geração da juventude, de estudantes e trabalhadores o socialismo e educando-os como marxistas sobre as bases da incomparável história do Comitê Internacional da Quarta Internacional.

Notas:

1. The U.S. as a Net Debtor: The sustainability of the U.S. External Imbalances, by Nouriel Roubini and Bred Setser (November 2004)

2. “Sustained Budget Deficits: Longer-Run U.S. Economic Performance and the Risk of U.S. Financial and Fiscal Disarray,” January 4, 2004, available at http://www.brook.edu/views/papers/orszag/20040105.pdf

3. Nazism, Fascism and the Working Class, by Tim Mason (Cambridge, UK, 1995), p. 106

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