Português

O que está por trás da derrota de Boric e do fortalecimento dos fascistas na eleição para a constituinte no Chile?

Publicado originalmente em 26 de maio de 2023

Em 7 de maio, os chilenos foram às urnas pela segunda vez para eleger o conselho que irá redigir a nova constituição do país, depois de a primeira proposta de reformulação, falsamente cunhada pela imprensa liberal como a “constituição mais progressista do mundo”, ter sido rejeitada de forma retumbante em setembro passado.

O governo de coalizão de pseudoesquerda do presidente Gabriel Boric sofreu uma derrota devastadora nas últimas eleições obrigatórias. A coalizão governamental de Boric, Unidade pelo Chile, que inclui os partidos Comunista (PCCh), Frente Ampla (FA) e Socialista (PS), conseguiu apenas 16 dos 50 assentos no conselho constitucional - um número insuficiente para bloquear propostas, muito menos para fazer alterações na constituição atual. Esse resultado está em sintonia com o declínio do índice de aprovação do governo, que, de acordo com as pesquisas, está agora abaixo de 30%.

Boric e a ministra da Defesa, Maya Fernandez Allende, em cerimônia da Marinha, dias depois que oficias da Marinha espancaram até a morte um sem-teto. [Photo: Gobierno de Chile/Twitter]

A eleição também viu a tradicional centro-esquerda ser dizimada. A coalizão de centro-esquerda Todos pelo Chile, que, aliada ao PS, governou desde o retorno ao regime civil, não conquistou uma única cadeira, demonstrando mais uma vez que esse cadáver político é mantido vivo por meios artificiais, ou seja, por sua cobertura incessante e super-representada na imprensa burguesa e por Boric colocá-la em posições de liderança em seu gabinete.

Em um sinal sinistro, o partido político que recebeu o maior número de votos foi o fascistoide Republicanos, uma escolha pela qual o capitalismo chileno optou no passado. O Partido Republicano, fundado em 2019 por José Antonio Kast, filho de um oficial alemão nazista e admirador do presidente dos EUA, Donald Trump, conquistou 23 assentos no conselho constitucional.

Com os 11 assentos do Chile Seguro, a coalizão de forças de ultradireita e do livre mercado, que inclui os herdeiros políticos da ditadura do general Augusto Pinochet nos partidos União Democrática Independente (UDI) e Renovação Nacional (RN), a direita terá uma maioria de dois terços, o que lhes permitirá manter intacta a constituição de Pinochet ou incluir artigos ainda mais autoritários.

A vitória de Kast, um pinochetista com profundas raízes nazistas e um dos favoritos do mundo corporativo e financeiro, animou os mercados. O Wall Street Journal disse com entusiasmo que “a bolsa de valores de Santiago subiu 2,3% à medida que os investidores se tornaram mais confiantes de que o Chile não faria mudanças de longo alcance em um modelo econômico que eles consideram responsável por anos de forte crescimento”.

Kast se gabou de que “os chilenos foram às urnas para dar um sinal forte e claro sobre o caminho que querem para o nosso país”.

O triunfalismo de Kast é contrariado pelo imenso número de pessoas que conscientemente anularam o voto (mais de 2,1 milhões de eleitores que rejeitaram todos os candidatos!), votaram em branco (mais de meio milhão de eleitores) e se abstiveram apesar da ameaça de uma multa pesada (quase 2,3 milhões de pessoas). No total, eles representaram um terço do eleitorado de 15,1 milhões de pessoas.

Isso ocorre em condições em que a classe trabalhadora enfrenta um aumento na taxa oficial de desemprego para 8,8%, um aumento de 24% no custo da cesta básica de alimentos no último ano, reajustes salariais abaixo da inflação na maior parte das últimas duas décadas e uma política fiscal que cortou os gastos em 23% em 2022.

Os resultados indicam que o país não apenas continua profundamente polarizado, como em 2019, quando uma situação revolucionária incipiente veio à tona, mas que o Partido Comunista e a Frente Ampla, lançados para salvar o capitalismo, estão se tornando, em tempo recorde, uma força política desgastada.

Quatro anos após a rebelião em massa de 2019, a classe trabalhadora chilena e internacional entrou em uma nova etapa na luta contra o desemprego em massa, o aprofundamento da desigualdade social, as altas taxas de juros e a inflação vertiginosa, além de uma resposta criminosamente negligente à pandemia de COVID-19 e o impulso para a guerra entre potências nucleares.

O processo constitucional do Chile: uma tentativa cínica de desviar a luta de classes

O exercício profundamente cínico para alterar a constituição foi iniciado há três anos como uma tentativa consciente do establishment político de acabar com as manifestações anticapitalistas históricas que varreram o país em 2019 e que criaram a crise mais aguda do regime burguês desde meados da década de 1980.

Em novembro de 2019, a “esquerda” parlamentar chilena realizou reuniões de unidade nacional com o governo sitiado do presidente de direita Sebastian Piñera para evitar seu colapso.

Com um novo fôlego, o governo se deslocou ainda mais para a direita, iniciando uma série de medidas de lei e ordem que marcariam o restante de seu mandato e o de Boric desde o início.

Em primeiro lugar, com a aprovação do Congresso, Piñera decretou um Estado de exceção no início da pandemia de COVID-19, restringindo a liberdade de movimento e de reunião. Isso colocou os militares no comando dos postos de controle em todo o país, e foi imposto toque de recolher. Essas medidas não fizeram nada para proteger a população do vírus que matou mais de 61.000 pessoas e infectou milhões. Seu objetivo era intimidar a população.

Em seguida, Piñera enviou ao Congresso uma série de projetos de lei criminalizando protestos sociais e permitindo repressões violentas em comunidades da classe trabalhadora, protestos estudantis e greves selvagens. Ele também enviou uma dúzia de projetos de lei solidificando o Estado policial. Os projetos de lei abrangentes incluíam o fortalecimento do aparato de inteligência unificando os vários departamentos das forças armadas e da polícia e permitindo a mobilização dos militares para proteger a infraestrutura pública e privada “crítica”.

Por fim, Piñera intensificou uma campanha antiga contra as comunidades indígenas mapuches empobrecidas, colocando a região sul do Chile em um Estado de exceção em outubro de 2021. O ataque à população indígena foi acompanhado de uma vil caça às bruxas contra os imigrantes, que se tornou uma das questões eleitorais em torno da qual todos os partidos políticos tentaram se destacar.

Foi nesse clima polarizado que Boric e companhia se apresentaram. Com a ajuda dos sindicatos corporativistas dominados pelo PCCh stalinista e pela coalizão de pseudoesquerda FA, bem como de seus satélites morenistas, Boric reciclou, para fins puramente eleitorais, o falso argumento reformista nacional de que o Estado capitalista, como suposto árbitro de contradições de classe irreconciliáveis, pode regular gradualmente o mercado em nível nacional e controlar os excessos do capitalismo.

O World Socialist Web Site alertou que os partidos da chamada “esquerda” estavam cometendo uma fraude monumental, especialmente o PCCh stalinista, o segundo partido político mais antigo do Chile. Como parte do governo da Unidade Popular de Salvador Allende, eles decapitaram uma revolução ao colocar uma camisa de força nos embrionários cordones industriales e outras iniciativas independentes dos trabalhadores, abrindo caminho para o golpe fascista-militar de 1973.

Em outubro de 2020, mais de 80% da população votou a favor de um referendo para mudar a constituição imposta durante a ditadura civil-militar fascista de Pinochet e mantida pela centro-esquerda tradicional.

Da mesma forma, nas eleições de maio de 2021 para os 155 assentos no conselho constitucional, a direita e os antigos partidos de centro-esquerda foram reduzidos a um pequeno grupo, enquanto os acadêmicos “progressistas” stalinistas, pseudoesquerdistas e morenistas, ativistas sociais, burocratas sindicais e radicais de classe média obtiveram dois terços dos voto.

Embora apenas 40% do eleitorado apto a votar, aqueles que o fizeram buscaram esmagadoramente candidatos que prometeram inscrever na nova constituição do país garantias de saúde pública, educação e aposentadoria, o fim das desigualdades sociais extremas, a redistribuição da riqueza, proteções ambientais, o fim da repressão policial e a expansão dos direitos.

A política identitária foi uma peça central da campanha da pseudoesquerda desde o início das eleições presidencial e para o conselho constitucional no final de 2021. Apontada como a constituição mais “progressista” por setores da pseudoesquerda internacional e por setores da classe média e da academia, seu objetivo central era aumentar o tamanho do Estado, criando uma nova burocracia indígena e garantindo a paridade de gênero no serviço público e no Estado.

Nesse sentido, foi lançada uma campanha enganosa para promover a Aprovar com Dignidade, a coligação eleitoral entre o PCCh a FA, como o único meio progressista de impedir a chegada ao poder do fascistoide Kast no segundo turno presidencial de dezembro de 2021.

Quatorze meses no poder

Bem antes da posse em 11 de março de 2022, a coalizão stalinista-pseudoesquerdista Aprovar com Dignidade havia revelado suas verdadeiras cores e seu modus operandi, com Gabriel Boric, o rosto do novo governo, fazendo pelos intermináveis ao “diálogo”, um eufemismo para acomodar seu governo com o imperialismo, a ultradireita e os fascistas, enquanto reprimia brutalmente a luta de classes. Seus parceiros no PCCh, enquanto isso, fazem denúncias demagógicas contra o imperialismo e a direita.

Em relação à política externa, Boric se alinhou abertamente com os objetivos estratégicos do imperialismo dos EUA contra a Rússia. Ele acusou a Rússia de lançar uma guerra de agressão, enquanto não expressava nenhuma oposição à expansão da OTAN ou ao objetivo declarado de Washington de infligir uma derrota estratégica e desmembrar a Federação Russa. Com uma demonstração igual de bajulação, Boric denunciou Cuba, Nicarágua e Venezuela por “autoritarismo”, mas não falou nada sobre a maior ameaça no Hemisfério Ocidental, os Estados Unidos.

Internamente, o governo de pseudoesquerda atendeu às exigências do capital financeiro, integrando ainda mais a antiga casta política de centro-esquerda em seu governo e implementando uma política monetária restritiva do ponto de vista fiscal, acabando com os programas de estímulo para ajudar as famílias da classe média e da classe trabalhadora com a inflação atingindo níveis não vistos desde 1992.

Nos 14 meses desde que assumiu o cargo, o governo de pseudoesquerda também implementou as leis de Estado policial do governo anterior. A reação de Boric à eclosão das revoltas contra a fome, das ocupações contínuas de escolas, greves e apreensões de terras indígenas no decorrer do ano foi liberar as forças especiais dos Carabineros e mobilizar as Forças Armadas - as instituições no centro das violações de direitos humanos em escala industrial nos últimos 50 anos.

O governo Boric expandiu o arsenal das forças dos Carabineiros como parte de um aumento de 4,7% no orçamento de segurança pública e concedeu aos militares um papel maior nas funções de ordem pública, incluindo seu destacamento para proteger a “infraestrutura crítica”.

Um Estado de exceção permanente foi decretado nas regiões de Biobío e La Araucanía, uma continuação da política de militarização iniciada pelo governo Piñera, em que as forças armadas estão sendo usadas no sul contra as populações indígenas mapuches que reivindicam terras ancestrais.

Mais recentemente, o governo ordenou o envio das forças armadas para as fronteiras do Peru e da Bolívia. A medida autoriza os militares a usar a força contra refugiados venezuelanos, haitianos e colombianos, em sua maioria clandestinos, que fogem de catástrofes humanitárias causadas por anos de instabilidade, em grande parte devido às sanções imperialistas e à ingerência dos EUA. Os refugiados começaram a se deslocar para o Chile em 2016, quando o destino de sua escolha, os EUA, foi fechado pela retomada das deportações em massa pelo governo Obama, que só aumentou com Trump e agora com Biden.

Os militares estão apoiando as patrulhas policiais nas fronteiras com a Bolívia e o Peru e têm permissão para usar força letal contra os refugiados. As cenas de imigrantes colombianos e venezuelanos sendo violentamente maltratados pelas forças chilenas e peruanas nas regiões de Tacna-Arica, que chamaram a atenção da mídia internacional, tornaram-se o novo normal.

A lei de maior alcance - conhecida como “Naín-Retamal” - dá aos militares e à polícia uma licença para matar e fornece imunidade legal retroativa contra processos por uso de força excessiva e letal. Vários processos já foram arquivados pelos tribunais.

A guinada da coalizão Aprovar com Dignidade de promessas para iniciar mudanças “transformadoras” para medidas de Estado policial deve servir de lição para a classe trabalhadora e para a juventude em nível internacional quanto ao papel da pseudoesquerda e suas promessas de reformas sociais por meio do Estado capitalista.

Os políticos burgueses mais astutos reconheceram que o nível de alienação e privação de direitos revelado nas últimas eleições, juntamente com uma crise econômica cada vez mais profunda, anuncia convulsões sociais. Assim, com muito alarde, o Congresso aprovou três leis que, aparentemente, parecem de reforma social. A primeira reduz a semana de trabalho de 45 para 40 horas. A segunda aumenta gradualmente o salário-mínimo mensal dos atuais 400.000 pesos (US$ 502 em dólares americanos atuais) para 500.000 (US$ 628) até meados de 2024. A terceira é um projeto de lei de royalties de mineração que estabelece uma carga tributária máxima sobre grandes operações de mineração que arrecadará até US$ 450 milhões.

No entanto, o diabo está nos detalhes. Embora ainda haja muito a ser discutido sobre essas leis, a primeira consagra a maior flexibilidade do trabalho e pode aumentar as penalidades laborais. A segunda não atinge a linha da pobreza. A terceira tem brechas que permitem que o setor de mineração deixe de pagar as somas irrisórias que a lei propõe arrecadar.

Como o WSWS previu, o papel político desempenhado pelos stalinistas, pela Frente Ampla e pelos morenistas apenas encorajou as forças mais direitistas e fascistoides, que sentem que estão em vantagem. A atual situação política perigosa precisa ser reconhecida e as lições do passado assimiladas pela classe trabalhadora como o primeiro passo para romper com toda a falsa esquerda chilena.

Loading