Esta palestra, proferida na Universidade de Michigan, em Ann Arbor, em 18 de abril de 1995, foi incluída no livro A Revolução Russa e o Inacabado Século XX, publicado em 2014. O livro em inglês está disponível para compra na Mehring Books.
Um dos aspectos mais importantes da literatura antimarxista é o de que a Revolução Russa foi um putsch, ou um golpe de Estado, organizado por um punhado de descontentes impiedosos que estavam determinados a impor uma ditadura totalitária sobre o povo. Segundo este argumento, o Partido Bolchevique não era nada mais do que uma seita minúscula antes de 1917, e chegou ao poder porque foi capaz de explorar a enorme confusão criada pela revolução. Mas de onde veio a revolução que causou toda a confusão? O historiador da Universidade de Harvard Richard Pipes argumenta que a revolução foi inteiramente um trabalho de uma intelligentsia tresloucada “que definimos como intelectuais sedentos pelo poder… eles eram revolucionários não com o objetivo de melhorar as condições do povo, mas com o objetivo de estabelecer uma dominação sobre o povo e reconstrui-lo à sua própria imagem”. [1]
Desde os anos 1980, muitos historiadores tentaram oferecer uma imagem mais detalhada da classe operária russa e de sua vida política antes de 1917. Os melhores entre esses trabalhos deram aos leitores uma ideia do que estava acontecendo no seio das massas e mostraram que os bolcheviques haviam estabelecido, muito antes de 1917, uma presença política de liderança dentro da classe operária. Em 1914, os mencheviques, que antes mantinham importantes posições dentro das organizações populares da classe operária, estavam claramente perdendo posições diante do crescimento dos bolcheviques. Não é surpreendente que o professor Richard Pipes tenha desqualificado a pesquisa empírica sobre o desenvolvimento do movimento operário russo pré-1917.
Hordas de estudantes de pós-graduação, guiados por seus professores, tanto na URSS quanto no ocidente, e nos EUA em especial, vasculharam assiduamente fontes históricas na esperança de descobrir evidências de um radicalismo dos operários na Rússia pré-revolucionária. Os resultados foram enormes volumes repletos de eventos e estatísticas insignificantes, que provam apenas que, mesmo que a história seja sempre interessante, os livros de história podem ser, ao mesmo tempo, vazios e monótonos. [2]
Eu usarei alguns desses “enormes volumes” e citarei seus “eventos e estatísticas insignificantes” para oferecer um breve panorama do desenvolvimento político da classe operária russa na década anterior à tomada do poder pelos bolcheviques. A derrota da revolução de 1905 resultou em um declínio impressionante na força numérica e na influência política das forças revolucionárias. Nos anos de ascensão revolucionária, dezenas de milhares de novos membros haviam se juntado tanto aos bolcheviques quanto aos mencheviques – as duas frações rivais do Partido Operário Social Democrata Russo. Depois de junho de 1907, a militância de massas de ambos os partidos desapareceu. O impacto da derrota produziu uma desmoralização geral. A política e as aspirações revolucionárias foram abandonadas até mesmo por ativistas que haviam dedicado anos à luta. A guinada de amplas parcelas da intelligentsia russa de volta à religião e o florescimento de todo o tipo de posturas retrógradas, incluindo um fascínio pela pornografia, refletiu-se no interior do movimento revolucionário. Em 1910, de acordo com Trotsky, Lenin tinha cerca de 10 contatos leais e ativos dentro da Rússia.
No entanto, esse não foi um período improdutivo. Lenin e Trotsky, apesar de suas discordâncias, analisaram os eventos de 1905, e tiraram deles as lições estratégicas que estabeleceram as bases para a vitória da revolução socialista em 1917. Para Trotsky, a revolução de 1905 havia demonstrado que a revolução democrática na Rússia poderia ser liderada apenas pela classe operária, e que a revolução assumiria uma direção cada vez mais socialista. Essa percepção da dinâmica sociopolítica da Revolução Russa estabeleceu as bases para a teoria da revolução permanente.
Para Lenin, as experiências de 1905 levaram a um aprofundamento da sua análise das diferenças entre o bolchevismo e o menchevismo. Elas ajudaram a iluminar o significado do racha do movimento operário socialista. As táticas empregadas pelos mencheviques ao longo da revolução de 1905 confirmaram o entendimento de Lenin de que o menchevismo representava uma corrente oportunista que refletia a influência da burguesia liberal sobre a classe operária. O desenvolvimento de um movimento revolucionário, insistiu Lenin, exigia um aprofundamento persistente da luta para expor, diante da classe operária, essa característica política do menchevismo.
Sob a liderança do atento primeiro-ministro Stolypin, o regime czarista viveu, depois de quase ter sido derrubado em 1905, um renascimento de suas possibilidades políticas. No entanto, o assassinato de Stolypin em 1911, que foi organizado pela polícia secreta, removeu o ministro mais capaz do czar exatamente quando o movimento operário entrava em uma nova fase de atividade radical. As greves de massas de 1912 criaram um clima político favorável a um crescimento rápido da influência bolchevique.
O período de reação entre 1907 e 1912 produziu uma aguda guinada à direita entre os mencheviques. Inspirando-se no que era de fato o aspecto mais fraco da socialdemocracia alemã – isto é, o domínio do partido alemão pelos sindicatos reformistas –, os mencheviques entraram na órbita dos liberais da burguesia, e suas aspirações adquiriram uma definitiva coloração reformista. Durante o período de reação, os mencheviques se beneficiaram dos seus laços com os Cadetes da burguesia liberal. Mas com a ascensão da classe operária a partir de 1912, os bolcheviques começaram a superar os mencheviques, mesmo nos sindicatos antes dominados por eles.
Uma indicação da radicalização política da classe operária aconteceu em 1913, no encontro do sindicato metalúrgico de Petrogrado. Essa organização havia sido dominada pelos mencheviques por muitos anos. No entanto, com a presença de entre 700 e 800 trabalhadores, o encontro elegeu uma maioria bolchevique para a diretoria provisória do sindicato. [3]
No fim de agosto de 1913, uma segunda eleição foi realizada para uma diretoria permanente. Dos 5.600 membros no total, entre 1.800 e 3.000 trabalhadores votaram. Uma direção bolchevique foi eleita e os mencheviques obtiveram apenas 150 votos. Os trabalhadores com consciência de classe de Petrogrado viram as diferenças nas posições dos bolcheviques e mencheviques. Enquanto os mencheviques opunham-se ao envolvimento dos sindicatos em lutas com qualquer caráter mais político ou revolucionário, os bolcheviques buscavam usar abertamente os sindicatos exatamente para tal propósito.
Ao longo do restante de 1913 e no início de 1914, os bolcheviques continuaram a tirar os mencheviques de suas posições dominantes nos sindicatos. Entre os tecelões organizados, por exemplo, os bolcheviques conseguiram uma maioria esmagadora na direção em julho de 1914. De 11 membros da direção, dez eram bolcheviques e um era socialista revolucionário. Os mencheviques haviam perdido todo o seu apoio.
Os gráficos, que estavam entre os trabalhadores mais qualificados e instruídos, elegeram candidatos bolcheviques em abril de 1914 para 9 das 18 posições de sua direção, e para 8 dos 12 suplentes.
Outra indicação do crescimento do apoio aos bolcheviques em detrimento dos mencheviques veio da tiragem de seus jornais. O jornal menchevique, Luch, tinha uma circulação de cerca de 16.000 exemplares por edição, mas o Pravda, o diário bolchevique, tinha uma circulação de 40.000 exemplares.
Em julho de 1914, às vésperas da guerra, a luta de classes nos grandes centros industriais da Rússia havia adquirido dimensões revolucionárias. Foram registrados conflitos entre os operários e a polícia nas ruas de Petrogrado. Para o regime czarista, a guerra veio num momento oportuno. Mesmo que a pressão da guerra tenha levado, em um período de três anos, a um agravamento do conflito social, seu impacto inicial foi suprimir o movimento operário revolucionário através de uma onda de fervor chauvinista. Os bolcheviques, altamente organizados, que tinha operado no limiar da legalidade, foram esmagados e levados novamente à ilegalidade.
Trotsky escreveria mais tarde que, se não fosse pela guerra, a erupção da revolução no final de 1914 ou 1915 seria um movimento proletário de massas desenvolvendo-se desde o início sob a liderança dos bolcheviques. A revolução começou em fevereiro de 1917 em condições muito menos favoráveis aos bolcheviques do que haviam sido em julho de 1914. Em primeiro lugar, sua organização mal funcionava na Rússia. Um grande número de seus quadros na classe operária fabril havia sido convocado para o exército e estava disperso no imenso fronte de batalha. As fábricas eram povoadas por trabalhadores com muito menos experiência política. Finalmente, a mobilização de massas do campesinato dentro do exército significou que, quando a revolução estourou, o caráter proletário do movimento social, pelo menos em seus estágios iniciais, estava muito menos pronunciado do que em 1914. É por isso que o Partido Socialista Revolucionário, baseado em grande parte no campesinato, emergiu das primeiras semanas da revolução como o maior partido político.
Apesar da correlação de forças desfavorável, os bolcheviques ainda mantiveram sua influência nos eventos revolucionários que levaram ao colapso do regime czarista em fevereiro e março de 1917. Como explicou Trotsky, em A História da Revolução Russa, o levante de fevereiro de 1917 não foi puramente “espontâneo”, isto é, sem qualquer traço de direção política. Anos de agitação e educação política empreendidos pelos bolcheviques, e mesmo pelos mencheviques, pelo menos na medida em que as concepções gerais do marxismo encontraram expressão nas atividades dos últimos, haviam deixado sua marca nos trabalhadores de Petrogrado.
Todo movimento de massas possui um certo tipo ou nível de consciência que se forma ao longo de um certo período. A consciência política e social coletiva da classe operária não era uma tabula rasa. Os eventos de 1905 não haviam sido simplesmente esquecidos. Uma geração de trabalhadores mais consciente havia sido influenciada pelos conflitos teóricos e políticos entre os bolcheviques e os mencheviques. Existe um motivo pelo qual o levante de fevereiro de 1917 levou à criação de Sovietes (conselhos operários) e assumiu a forma de uma luta política contra o czarismo, ao invés de uma revolta e depredação apolítica. Uma vez que a guerra não havia destruído inteiramente a organização clandestina e eliminado seus quadros das fábricas, os bolcheviques ainda estavam em posição de conferir uma consciência mais militante ao levante de massas em fevereiro de 1917. Levando tudo isso em consideração, nós concordamos com – e a pesquisa histórica contemporânea embasa – a afirmação de Trotsky de que a Revolução de Fevereiro havia sido liderada por “operários conscientes e temperados, educados, em sua maior parte, pelo partido de Lenin”.
Os “segredos” de Lenin
A afirmação mais comum entre os historiadores reacionários é que a tomada do poder pelos bolcheviques foi o resultado de uma conspiração sinistra organizada e realizada pelas costas do povo russo, incluindo a classe operária em cujo nome a revolução foi realizada. Para explicar como a maior revolução da história emergiu como o produto de tal conspiração, é preciso tomar como referência novamente Richard Pipes.
Lenin era um homem de muitos segredos. Apesar do fato de ele falar e escrever prolificamente o suficiente para preencher 55 volumes de obras completas, seus discursos e escritos são, em sua esmagadora maioria, agitação e propaganda, com o objetivo de persuadir eventuais seguidores e destruir opositores conhecidos muito mais que revelar seus pensamentos. Ele raramente revelava o que estava em sua mente mesmo para pessoas próximas. Como comandante supremo da guerra global entre as classes, ele manteve seus planos em segredo. Para reconstruir seu pensamento é necessário, portanto, proceder de forma retroativa dos feitos conhecidos para as intenções escondidas. [5]
Considere isto: tendo produzido 55 volumes de literatura política, cada um deles com 300 a 500 páginas, Lenin, ao longo de sua carreira política de 30 anos, tinha uma produção média anual entre 600 e 1.000 páginas (em formato impresso). Essa produção incluía estudos econômicos, escritos filosóficos, tratados políticos, resoluções, comentários e artigos em jornais, extensa correspondência profissional e pessoal, inúmeros memorandos e notas particulares, como os Cadernos Filosóficos, que nos permitem acompanhar o desenvolvimento intelectual de suas concepções. Muito do dia de trabalho de Lenin, por anos e anos, foi gasto sobre a escrivaninha. Mesmo assim, tudo isso que foi escrito, de acordo com Pipes, não era mais do que uma forma pela qual Lenin habilidosamente escondia o que realmente estava pensando!
É necessário dizer que a forma como Pipes condena Lenin utiliza a exata lógica empregada por Stalin ao organizar a armação contra Leon Trotsky e os velhos bolcheviques nos Processos de Moscou dos anos 1930. Stalin e seus cúmplices afirmaram que os escritos públicos e declarações de Trotsky em um período de muitas décadas, incluindo os anos em que ele foi o líder do Exército Vermelho, eram uma cobertura para sua conspiração secreta de décadas para destruir a União Soviética. Os “métodos investigativos” de Stalin e do célebre historiador de Harvard – descritos pelo próprio Pipes como um movimento retroativo “dos feitos conhecidos às intenções escondidas” – relembra os procedimentos jurídicos de um julgamento medieval contra bruxas.
Quanto à alegação específica de que Lenin manteve seus pensamentos para si enquanto “conspirava” secretamente pela derrubada do Governo Provisório, é difícil levá-la a sério. É necessário ter em mente que, ao longo de 1917, Lenin exerceu sua influência sobre a classe operária principalmente através da escrita. De fato, foi um documento escrito conhecido despretensiosamente como Teses de Abril, que mudou decisivamente as políticas do partido depois da volta de Lenin do exílio e colocou os bolcheviques no caminho do poder. Mais tarde, entre julho e outubro de 1917, ele estava na clandestinidade e dependeu da força de seus argumentos escritos para influenciar o Partido Bolchevique. Lenin dificilmente teria superado a resistência da liderança do Partido Bolchevique ao seu chamado para derrubar o Governo Provisório se não fosse pela influência que exerceu sobre a militância de massas do partido através de seus escritos. John Reed reconheceu o caráter único da autoridade de Lenin quando escreveu, em seu famoso Dez dias que abalaram o mundo, que Lenin era um dos poucos líderes da história mundial que havia se tornado líder das massas por causa de sua força intelectual.
A teoria da conspiração defendida por Pipes e tantos outros é refutada de forma mais convincente pela pesquisa histórica realizada por estudiosos que descobriram uma abundância de informações em relação ao escopo do movimento de massas da classe operária sobre o qual baseou-se a investida dos bolcheviques sobre o poder. Um estudo desse material leva à conclusão de que a conquista do poder pelo Partido Bolchevique foi qualquer coisa menos o resultado de um putsch preparado em algum lugar obscuro de Petrogrado. O Partido Bolchevique passou uma boa parte do ano tentando manter-se no ritmo do movimento de massas que possuía um impulso dinâmico que não era visto desde a Revolução Francesa.
O bolchevismo e a classe operária
Às vésperas da Revolução de Fevereiro, de acordo com a Enciclopédia Blackwell da Revolução Russa, havia aproximadamente 3,5 milhões de trabalhadores nas fábricas e minas na Rússia. Havia outros 1,25 milhão empregados no transporte e na construção. O número real de pessoas que poderiam ser classificadas como operários assalariados correspondia a 10% da população, ou 18,5 milhões de pessoas. [6] Petrogrado era um grande centro industrial, cujos arredores abrigavam 417 mil operários industriais. Desses, cerca de 270 mil eram metalúrgicos, e outros 50 mil trabalhadores estavam empregados na indústria têxtil e 50 mil na indústria química. O outro grande centro industrial da Rússia era Moscou, com aproximadamente 420 mil operários, um terço dos quais eram trabalhadores têxteis e um quarto metalúrgicos.
Havia grandes concentrações operárias industriais nos Urais, na Ucrânia – cuja região do Donbass empregava aproximadamente 280 mil trabalhadores –, assim como na região do Báltico, na Transcaucásia e na Sibéria. Considerando toda a população russa, a classe operária era numericamente pequena, mas era altamente concentrada. Mais de 70% dos operários de Petrogrado estavam empregados em empresas com mais de mil trabalhadores. Dois terços dos operários ucranianos estavam empregados em empresas com mais de 500 trabalhadores. O mesmo acontecia nos Urais. [7]
Antes do retorno de Lenin à Rússia em abril de 1917, a direção do Partido Bolchevique na capital havia adotado uma política de apoio condicional ao Governo Provisório burguês, incluindo em relação à continuidade da guerra contra a Alemanha e a Áustria-Hungria sob a justificativa de que a revolução não poderia saltar sobre a etapa democrática-burguesa do desenvolvimento revolucionário. Lenin opôs-se a essa política, mas ele ainda estava na Suíça, e era incapaz de intervir diretamente nas deliberações da direção do partido em Petrogrado. O corpo editorial do Pravda, liderado por Stalin, recusou-se a publicar as declarações de Lenin, que expressaram grandes discordâncias com as políticas conciliatórias do Partido Bolchevique. Foi apenas com o retorno de Lenin à Rússia que ele pôde, ao longo de diversas semanas de luta no interior do partido, mudar a orientação dos bolcheviques. As divisões no Partido Bolchevique surgiram do fato de que Lenin lutou para mudar uma posição programática que ele havia desenvolvido e defendido por muitos anos. Para os velhos bolcheviques, os quais ele agora atacava, a nova linha de Lenin – defendendo a derrubada do Governo Provisório, e a tomada do poder pela classe operária – era uma capitulação herética à teoria da revolução permanente, que havia sido proposta por Trotsky e contra a qual os bolcheviques haviam lutado por uma década.
Lenin havia chegado, por seu próprio caminho, à perspectiva com a qual Leon Trotsky estava tão claramente identificado. A experiência da Guerra Mundial, analisada através de seu próprio estudo do imperialismo moderno, havia levado Lenin a concluir que a Revolução Russa era o início de uma revolução socialista mundial; que a crise internacional do capitalismo, interagindo com a debilidade da burguesia russa em sua subordinação ao capital internacional, não deixava aberta nenhuma possibilidade de uma etapa democrática-burguesa progressista do desenvolvimento russo; e que a única classe capaz de romper a subordinação russa ao imperialismo e realizar as tarefas democráticas da revolução era o proletariado. Essas conclusões formaram a base das Teses de Abril de Lenin, que defendiam a transferência do poder de Estado ao soviete operário.
O debate na conferência de abril não era entre um pequeno círculo de revolucionários clandestinos. À medida que o número de membros no partido crescia rapidamente, a luta dentro do partido envolveu e foi acompanhada por camadas significativas da classe operária. O historiador britânico Steve Smith argumentou que as Teses de Abril de Lenin tiveram um impacto direto e poderoso na consciência dos setores mais avançados da classe operária de Petrogrado, particularmente no distrito de Vborg e na ilha Vasil’evskii. Smith apresenta como evidência uma resolução adotada por assembleias gerais de operários nas fábricas de Puzyrev e de Ekval durante as “Jornadas de Abril” – isto é, as primeiras grandes manifestações da classe operária contra o Governo Provisório.
O governo não pode e não quer representar os desejos da totalidade do povo trabalhador, e assim nós exigimos a sua abolição imediata e a prisão dos seus membros de modo a neutralizar seu ataque à liberdade. Nós reconhecemos que o poder precisa pertencer apenas ao próprio povo, isto é, ao Soviete de Deputados de Operários e Soldados, como única instituição de autoridade gozando a confiança do povo. [8]
Leon Trotsky escreveu em sua A História da Revolução Russa que a principal característica da revolução é a “intervenção direta das massas nos eventos históricos”. Apesar dos esforços dos representantes da burguesia, como Milyukov, e os líderes moderados do Soviete para estabelecer a autoridade do Governo Provisório, os acontecimentos de fevereiro liberaram uma explosão de criatividade democrática popular. Os comitês de fábrica e de trabalho que se formaram em Petrogrado e por toda a Rússia eram a expressão prática da determinação do proletariado em estabelecer seu poder e reorganizar a sociedade em linhas anticapitalistas. Comitês de fábrica evoluíram para estruturas complexas envolvidas em virtualmente todos os aspectos da vida cotidiana. Eles formaram subcomitês que foram responsáveis pela segurança das fábricas, estoques de alimentos, cultura, saúde e segurança, a melhoria das condições de trabalho, e a manutenção da disciplina de trabalho através do desencorajamento do uso de álcool.
Conforme a revolução se aprofundava, os comitês passaram a preocupar-se cada vez mais com a organização e o controle da produção. A Enciclopédia Blackwell cita o trabalho do historiador Z.V. Stepanov, que “contou 4.266 atos realizados por 124 comitês de fábrica em Petrogrado entre 1˚ de março e 25 de outubro, e calcula que 1.141 atos estavam relacionados ao controle operário da distribuição e produção; 882 estavam relacionados a questões organizativas; 347 a questões políticas; 299 aos salários; 241 relacionavam-se à contratação e demissão e ao monitoramento do serviço militar obrigatório.” [9]
No final do verão e no outono de 1917, os comitês de fábrica começaram a exigir que os empregadores lhes permitissem o acesso aos livros de suprimentos e de contabilidade. Em outubro, alguma forma de controle operário estava acontecendo em 573 fábricas e minas com a força de trabalho combinada de 1,4 milhão de operários.
Ao longo de 1917, os bolcheviques desenvolveram uma enorme força dentro dos comitês de fábrica. Muito antes de os bolcheviques obterem a maioria dentro do Soviete de Petrogrado, eles estavam na liderança dos mais importantes comitês de fábrica. Um estudo das resoluções adotadas pelas assembleias locais mostra que havia uma resposta entusiasmada às palavras de ordem e principais demandas do Partido Bolchevique. Em Moscou, que era menos desenvolvida politicamente que Petrogrado, o mês de outubro de 1917 viu mais de 50 mil trabalhadores adotarem resoluções em apoio à demanda dos bolcheviques de transferência do poder para os Sovietes; e há uma claríssima evidência de que a tomada do poder pelos bolcheviques foi saudada por uma ampla maioria da classe operária.
É possível termos uma ideia do humor da classe trabalhadora em outubro de 1917 através do estudo dos desenvolvimentos no centro têxtil de Ivanovo-Kineshma, 400 quilômetros ao nordeste de Moscou, realizado pelo historiador David Mandel. O forte apoio aos bolcheviques veio desde antes da revolução. Em outubro de 1917, ele havia se tornado esmagador. Até certo ponto, os operários em Ivanovo-Kineshma expressaram a impaciência com a atividade bolchevique em Petrogrado. Quando um orador bolchevique, em um discurso ao Soviete de Kineshma no fim de setembro de 1917, colocou a questão retórica: “A história nos convoca a tomar o poder… estamos prontos?”, uma voz do plenário respondeu: “Nós estamos prontos há muito tempo, mas não sabemos porque ainda estamos dormindo no ponto.” [10]
Mesmo que alguém esteja inclinado a tratar tais anedotas históricas de forma cética, não há dúvida sobre a realidade do processo objetivo que elas pretendem ilustrar. Entre abril e outubro, o Partido Bolchevique experimentou um crescimento excepcional. Em abril de 1917, a organização de Petrogrado dos bolcheviques era constituída por cerca de 16 mil trabalhadores. Em outubro, havia crescido para 43 mil membros, dos quais dois terços eram operários. Em junho de 1917, as eleições para o primeiro Congresso Pan-Russo dos Sovietes elegeram 283 delegados socialistas revolucionários, 248 mencheviques e apenas 105 bolcheviques. As eleições para o segundo Congresso Pan-Russo, que se reuniu às vésperas da Revolução de Outubro, quatro meses depois, produziu uma transformação impressionante: a fração dos bolcheviques entre os delegados cresceu para 390, a dos socialistas revolucionários caiu para 160 e a dos mencheviques diminuiu para 72.
Os operários mudaram repetidamente as suas afiliações políticas no curso da revolução, movendo-se em geral para a esquerda à medida que se tornavam cada vez mais insatisfeitos com o Governo Provisório e a recusa dos partidos socialistas moderados de romper com ele. Com destacou o historiador Tim McDaniel:
A crise econômica, a continuidade da guerra, a aceleração do conflito de classe e o putsch de Kornilov transformaram a imensa maioria dos operários politicamente ativos em inimigos do Governo Provisório e suas diversas encarnações ... Eles deixaram de enxergar qualquer distinção essencial entre o novo governo e o velho regime czarista, exceto pelo fato de que o Governo Provisório era agora mais claramente uma “ditadura burguesa”. [11]
A carta de um operário que havia sido membro do Partido Socialista Revolucionário para um jornal bolchevique reflete as mudanças no clima político ao longo de 1917:
Por causa de uma grande confusão, eu aderi ao partido SR, que agora passou para o lado da burguesia e dá a mão aos nossos exploradores. Para que eu não seja pregado a esse monumento da vergonha, estou deixando as fileiras dos chauvinistas. Como um proletário consciente, eu estou me juntando aos camaradas bolcheviques, que são os únicos genuínos defensores do povo oprimido. [12]
Está claro que a radicalização da classe trabalhadora em 1917 não foi um processo homogêneo sem contradições complexas. Mesmo em áreas onde a força dos bolcheviques cresceu rapidamente, como entre os mineiros do Donbass, eles também encontraram oposição. Houve momentos em que eles foram vítimas de rápidas mudanças no humor dos trabalhadores. E, ainda assim, apesar de todas as suas contradições, a Revolução de Outubro foi o resultado de um movimento de massas e politicamente consciente da classe operária. [13]
Sintetizando os resultados de sua pesquisa sobre as causas da vitória bolchevique, o professor Steve Smith escreveu:
Os bolcheviques não criaram, eles mesmos, o descontentamento popular ou o sentimento revolucionário. Esse sentimento surgiu das experiências das próprias massas com complexos levantes econômicos e sociais e eventos políticos. A contribuição dos bolcheviques foi, na realidade, moldar o entendimento dos operários da dinâmica social da revolução e zelar pela consciência de como os problemas urgentes da vida cotidiana estavam relacionados à ordem política e social mais ampla. Os bolcheviques ganharam apoio porque a sua análise e as soluções que propunham pareciam fazer sentido. Um trabalhador da fábrica Orudiinyi, que havia sido um bastião do defensismo, onde os bolcheviques não tinham permissão para falar, declarou em setembro que “Os bolcheviques sempre disseram: ‘não somos nós que vamos convencer vocês, mas a própria vida’. E agora os bolcheviques triunfaram porque a vida provou que as suas táticas estavam corretas.” [14]
Mais de meio século atrás, quando ainda havia uma intelligentsia americana que acreditava na possibilidade do progresso humano e era capaz de refletir de modo inteligente, mesmo que não de forma completamente simpática, sobre o significado da Revolução Russa, surgiu um livro influente do crítico literário Edmund Wilson intitulado Rumo à estação Finlândia. Wilson, apesar de sua desconfiança aristocrática das massas revolucionárias e seu desprezo pragmático pela dialética, argumentou que a chegada de Lenin à estação Finlândia, em abril de 1917, marcou o ponto alto na luta do homem para se fazer o mestre incondicional de seu próprio desenvolvimento social.
“O ponto”, escreveu Wilson, “é que se pode ver que o homem ocidental, neste momento, fez alguns progressos definitivos no controle da ganância e dos medos, da perplexidade em que tem vivido.” [15]
Nós concordamos plenamente com essa abordagem da qual Wilson depois recuaria sob a pressão do Macarthismo. A Revolução Russa ainda representa o ponto mais alto nos esforços conscientes da humanidade para alcançar o controle do seu próprio destino, para dominar conscientemente tudo que representa, de uma forma ou de outra, a dominação das forças incompreendidas da natureza sobre o desenvolvimento humano.
O marxismo não introduziu no mundo um novo conjunto de concepções utópicas. Ele reconheceu o potencial para mudar a história dentro das forças sociais existentes. Ele descobriu uma força social, a classe operária, capaz de acabar com as formas de opressão de classe que evoluíram historicamente. A opressão do proletariado pela classe capitalista teria de terminar, não apenas porque era, no sentido convencional do termo, moralmente errada; mas porque essa opressão havia se tornado um limite ao desenvolvimento progressista da própria sociedade humana. Precisamente está aí a imoralidade da opressão capitalista.
O marxismo introduziu na classe trabalhadora um entendimento do processo histórico do qual ela era parte; e, assim, transformou essa classe de um objeto da história em seu sujeito consciente. A educação marxista da classe operária começou em 1847. A Revolução de Outubro, 70 anos depois, foi o resultado desse grande processo de esclarecimento socialista.
Por motivos que devem ser estudados e compreendidos, a Revolução Russa sofreu um retrocesso tremendo. Mas isso não invalida de nenhuma maneira o significado duradouro e a relevância dos eventos de 1917.
Referências
1. Richard Pipes, Russia Under the Bolshevik Regime (Nova York: Vintage Books, 1995), p. 495.
2. Ibid., p. 494.
3. Victoria Bonnell, Roots of Rebellion (Berkeley: University of California Press, 1983), p. 394.
4. Leon Trotsky, History of the Russian Revolution (Nova York: Pathfinder Press, 1980), p. 199.
5. Richard Pipes, The Russian Revolution (Nova York: Vintage Books, 1991), p. 394.
6. Harold Shukman, ed., The Blackwell Encyclopedia of the Russian Revolution (Oxford: Basil Blackwell, Ltd., 1994), p. 19.
7. Ibid.
8. Steve A. Smith, “Petrograd in 1917: the view from below”. In: The Workers’ Revolution in Russia, 1917: The View From Below, ed. Daniel H. Kaiser (Cambridge: Cambridge University Press, 1987), p. 66.
9. The Blackwell Encyclopedia of the Russian Revolution, p. 22.
10. David Mandel, “October in the Ivanovo-Kineshma industrial region,” ed. Frankel, Frankel and Knei-paz, Revolution in Russia: Reassessments of 1917 (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), p. 160.
11. Tim McDaniel, Autocracy, Capitalism and Revolution in Russia (Berkeley: University of California Press, 1988), p. 355.
12. The Workers’ Revolution in Russia,1917: The View from Below, pp. 73–74.
13. Essa conclusão foi substanciada pela enorme pesquisa de Alexander Rabinowitch, professor emérito da Universidade de Indiana. No prefácio ao livro Os Bolcheviques Chegam ao poder, o terceiro volume de seu estudo monumental sobre a Revolução de Outubro, Rabinowitch – sintetizando as conclusões dos volumes anteriores – escreve:
“Os Bolcheviques Chegam ao Poder, juntamente com o volume Prelúdio à revolução, desafiou as ideias dominantes no ocidente de que a revolução de Outubro foi um golpe militar realizado por um bando pequeno e unido de fanáticos revolucionários liderados brilhantemente por Lenin. Eu descobri que, em 1917, o Partido Bolchevique em Petrogrado transformou-se num partido político de massas e que, ao invés de ser um movimento monolítico marchando unificadamente atrás de Lenin, a sua liderança estava dividida em alas à esquerda, ao centro e à direita moderada, cada uma delas tendo ajudado a moldar a estratégia e a tática revolucionária. Eu também descobri que o sucesso do partido na luta pelo poder depois da derrubada do czar em 1917 deveu-se, de forma extremamente importante, à sua flexibilidade organizacional, abertura e resposta às aspirações populares, assim como às suas conexões extensas e cuidadosamente cultivadas com os trabalhadores fabris, soldados da guarnição de Petrogrado, e marinheiros da frota do Báltico.” [Bloomington and Indianapolis: 2007, pp. ix–x]
As conclusões do professor Rabinowitch têm um peso excepcional, e não apenas por causa da autoridade que ele conquistou ao longo de meio século como mestre da arte de historiador. Rabinowitch esclareceu que – tendo crescido em uma família de emigrados russos, com fortes simpatias mencheviques – começou sua pesquisa sobre a Revolução Russa acreditando firmemente que a tomada do poder pelos bolcheviques foi realizada sem o apoio das massas. O peso da evidência que ele descobriu, à medida que investigava os arquivos de Leningrado-Petrogrado, o compeliu a revisar essas concepções. O trabalho do professor Rabinowitch exemplifica uma integridade intelectual e devoção à verdade que deveria servir de exemplo a uma nova geração de estudiosos.
14. Ibid., p. 77.
15. Edmund Wilson, To The Finland Station (Londres: Macmillan Publishers, 1983), p. 472.