Publicado originalmente em 9 de fevereiro de 2021
Esta é a quarta e última parte. A parte um foi publicada em 22 de fevereiro. A parte dois foi publicada em 1º de março. A parte três foi publicada em 2 de abril.
Em 20 de agosto de 1940, Leon Trotsky foi assassinado pelo agente stalinista, Ramón Mercader, no subúrbio de Coyoacán, na Cidade do México. O acesso de Mercader ao grande revolucionário foi possibilitado pelo seu relacionamento com Sylvia Ageloff, membro do Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores, SWP). Após o assassinato, Ageloff se apresentou como uma vítima inocente da enganação de Mercader, uma declaração que nunca foi contestada pelo SWP.
Esta série de artigos constitui a primeira investigação sistemática do movimento trotskista sobre o papel de Ageloff e continua o trabalho da investigação Segurança e a Quarta Internacional do Comitê Internacional da Quarta Internacional. Esta é a última parte de uma séria de quatro artigos.
A investigação mexicana do assassinato
A investigação mexicana começou de fato com os primeiros depoimentos de Ageloff e Jacson-Mornard.
O assassinato de Trotsky ainda é visto no México como o homicídio mais importante da história moderna do país. O governo mexicano realizou a única investigação séria e contemporânea do assassinato, incluindo um exame do papel de Ageloff na trama. Os seus álibis, ataques de histeria e alegações de inocência não impediram os investigadores mexicanos de avaliar criticamente as ações de Ageloff com base nos fatos.
O governo de Lázaro Cárdenas e a polícia da Cidade do México consideraram a investigação um assunto legal de enorme importância. O assassinato de um importante refugiado por agentes de outro país – especialmente de uma pessoa como Trotsky, que concentrava tanto respeito na classe trabalhadora – foi um desafio à soberania nacional do México. O governo designou os seus mais proeminentes investigadores e promotores públicos para tratar do caso. A sua investigação foi objetiva e profissional. As autoridades conduziram dezenas de entrevistas e empregaram métodos avançados que ainda são ensinados aos criminologistas mexicanos hoje em dia. Os responsáveis pela investigação, incluindo o famoso criminologista mexicano, Alfonso Quiroz Cuarón, demonstraram um nível de preocupação com o assassinato e seus participantes que foi totalmente ausente na resposta do SWP. [161]
Os investigadores mexicanos começaram recolhendo o depoimento de Ageloff e Jacson-Mornard. No decorrer de sua investigação preliminar, os promotores começaram a coletar fortes evidências circunstanciais, que acreditavam refutarem a alegação de inocência de Ageloff.
A investigação preliminar mexicana
Quando Ageloff começou a responder às perguntas, a polícia e os promotores tiveram a oportunidade de observar o seu comportamento e comparar as suas explicações sobre o que aconteceu com os depoimentos de Jacson-Mornard e de outras testemunhas. Baseados nas informações que haviam recolhido sobre o passado de Ageloff e suas ações, eles determinaram que não era possível acreditar na alegação de que tinha sido enganada.
As evidências circunstanciais que apoiaram essa conclusão incluem:
- As autoridades mexicanas acreditavam que o papel de Ageloff em combinar o jantar com Schüssler era muito suspeito. Eles acreditavam que Ageloff e Jacson-Mornard fizeram planos com os Schüsslers para garantir a ausência de Schüssler da casa de Trotsky, facilitando o assassinato.
- Ageloff admitiu que ela possuía família na Rússia. Isso levantava questões sobre a possibilidade de a GPU poder pressioná-la ameaçando de violência seus familiares na Rússia
- Ageloff admitiu que, em uma ocasião, ela viu que “quando [Mercader] escreveu para seu chefe, ele o fez em código”. Ela disse que perguntou sobre o código a ele, “e então ele escreveu uma série de sinais em um pedaço de papel, e o rasgou imediatamente”. [162] Os promotores acreditavam que, se ela viu isso, deixar de informar Trotsky indicava envolvimento na conspiração criminosa.
- Da mesma forma, a investigação descobriu que “Sylvia afirmou que Jackson nunca permitiu que ela lesse sua correspondência, que ele mantinha escondida, e também, quando veio de Nova York para o México, Jackson nunca se separava de uma mala que tinha em suas mãos”. [163] O fato de Ageloff deixar de contar esses detalhes a Trotsky também implicava que estava envolvida na trama, mas estava tentando inventar uma história para se apresentar como inocente.
- Para a acusação, o fato de Jacson-Mornard ter proclamado a inocência de Ageloff foi mais uma prova de sua colaboração. Durante uma audiência, Jacson-Mornard disse ao juiz: “Tendo lido e relido o texto da parte relativa da referida ordem; acho que tudo o que a ordem diz a respeito de Sylvia não me convence; e que, se eu tivesse sido o juiz, eu teria concedido a sua liberdade”. [164]
- O promotor Francisco Cabeza de Vaca disse que a história de Jacson-Mornard – em que ele e Ageloff estavam apaixonados e que o assassino matou Trotsky porque ele interferiu em seu relacionamento – era “completamente absurda, o que você declarou até agora é inaceitável, não funcionaria no cérebro de nenhuma pessoa razoável nem no cérebro de uma criança; não podemos aceitar nem aceitaremos”. [165] Cabeza de Vaca disse que Jacson-Mornard “deve reconhecer que esse argumento é completamente desprezível, que é inaceitável, que o senso comum o rejeita e que, pela última vez, estou dando a você a oportunidade de dizer a verdade”. [166]
O emprego e o acesso ao dinheiro de Ageloff
A polícia e os promotores de justiça também descobriram em sua investigação que Jacson-Mornard havia oferecido vários empregos a Ageloff em Paris, e fornecido milhares de dólares a ela no decorrer do seu suposto relacionamento. Os investigadores mexicanos estabeleceram que Ageloff recebia apenas US$103 mensais de seu trabalho como psicóloga infantil em Nova York, e, conforme Barrón Cruz observou, “obviamente, as autoridades perguntaram a ela como conseguiu os recursos financeiros para continuar fazendo viagens” à Europa e ao México. [167]
Segundo Barrón Cruz, Cabeza de Vaca acreditava ser muito incriminatório que “Sylvia mencionou que Jackson tinha dado US$3 mil a ela em Nova York e que eles depositaram o dinheiro em um banco na Broadway, cujo nome ela não se lembrava; sobre isso, Jackson a corrige e diz que na verdade eram US$3.500”. [168] Ajustados de acordo com a inflação, US$3 mil em 1940 equivalem a cerca de US$55 mil atualmente. A polícia mexicana acreditava que Ageloff gastou esse dinheiro como uma despesa do trabalho ligado à espionagem para visitar Jacson-Mornard no México.
A investigação do FBI
Os investigadores mexicanos não foram os únicos que concluíram que Ageloff participou do assassinato de Trotsky. O FBI conduziu uma investigação separada e chegou às mesmas conclusões que os mexicanos.
Em particular, o FBI considerou a transferência de US$3 mil uma forte prova de que Ageloff era uma agente da GPU.
Em um relatório do FBI de 5 de setembro de 1940, o agente J.B. Little relatou a opinião do agente Raymond E. Murphy, que explicou que, em outros casos de espionagem soviética, os co-conspiradores da GPU pediam para os seus parceiros “depositar US$3 mil” para eles. “O Sr. Murphy informou que o depósito de US$3 mil por esses indivíduos parece ser uma prática uniforme do trabalho dos agentes russos, e ele estava chamando a atenção do FBI para que leve isso em consideração”. [169] Ageloff alegou que os US$3 mil que recebeu foram “deixados [para Jacson-Mornard] por sua mãe quando ela morreu”. [170]
Os documentos do FBI da investigação listam tanto “Mornard” quanto “Ageloff” como cúmplices no crime. Em 29 de agosto de 1940, o FBI relatou os resultados do terceiro depoimento de Ageloff. O relatório indica que o FBI estava pressionando ela e sua família para sair limpa e dizer a verdade, que os agentes suspeitavam que ela estava escondendo. O FBI estava interessado nos conhecimentos de Ageloff sobre o funcionamento interno da GPU. O relatório diz:
No depoimento de Monte Ageloff, irmão de Sylvia Ageloff, foi deixado claro que sua irmã estava realmente em apuros, e que as autoridades mexicanas acreditavam que ela estava protegendo o assassino Jacson, e que, provavelmente, enviariam ela ao Tribunal Penal como cúmplice, e que, se ele tivesse alguma influência sobre ela, ele deveria convencê-la a contar toda a verdade. O escrevente estava presente no primeiro depoimento de Monte e sua irmã, e o ouviu dar a ela os conselhos que o escrevente havia lhe dado. Apesar desses conselhos, um depoimento posterior dela mostra que ela permanece firme na proposição de que não fazia ideia de que Jacson pretendia cometer o crime que ele cometeu, e ela não fazia ideia de quem poderiam ser seus cúmplices. [171]
O relatório sugere que o “Escritório de Nova York” do FBI colha os depoimentos de Hilda Ageloff e dos Rosmers, mas não há registros públicos disso. Contrariando suas alegações de ter sido enganada, o relatório do agente do FBI concluiu: “Apesar dessa garota ser muito hábil em ter ataques histéricos na hora certa, na minha opinião, ela é difícil e pode nunca dizer tudo o que sabe que possa ser útil para determinar o que estava por trás do assassinato de Trotsky por Jacson”. [172]
A avaliação de Whittaker Chambers da família Ageloff
Após o assassinato, o SWP solicitou a opinião de Whittaker Chambers sobre o papel de Ageloff no assassinato.
Chambers possuía um conhecimento preciso do funcionamento da GPU. Entre 1932 e 1938, ele serviu como líder de um grupo de espiões da GPU que trabalhavam dentro do governo americano. O envolvimento de Chambers nessa rede – conhecida como o “Grupo Ware” por conta do fundador da rede, Harold Ware – deu a ele acesso a informações de alto escalão sobre o papel dos agentes da GPU nos EUA.
Apreensivo por conta dos assassinatos stalinistas de Ignace Reiss e de sua amiga stalinista Julia Stewart Poyntz, em 1937, Chambers rompeu com o Partido Comunista por volta de 1938 e se escondeu. Em 1939, Chambers começou a fornecer informações ao governo dos EUA.
Em 1948, Chambers se tornou uma figura conhecida quando testemunhou diante da Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara (HUAC) dos EUA e entregou os nomes dos membros do Partido Comunista que faziam parte do Grupo Ware. Eles incluíam Alger Hiss, o funcionário do Departamento de Estado que negou ser espião, mas que foi condenado em 1950 por perjúrio. Chambers se tornou um neoconservador proeminente do período pós-guerra.
Logo após a sua ruptura com o Partido Comunista, Chambers realizou uma discussão secreta com um membro do SWP para fornecer informações ao movimento trotskista. Essa discussão foi transcrita pelo SWP e era conhecida como “Memorando W”. A conclusão de Chambers sobre a família Ageloff foi a seguinte:
Não posso acreditar na inocência das meninas Ageloff. Somente um idiota poderia viver com um agente da GPU e não perceber. A atual conduta de Sylvia não é decisiva para convencê-lo do contrário; ela pode estar tentando se salvar, ou ter se arrependido (mas não o suficiente para contar tudo), ou pode até mesmo estar interpretando um papel. Ele disse que qualquer uma dessas três possibilidades é mais provável do que a inocência dela. A família Ageloff o lembra dezenas de outras semelhantes empregadas pela GPU: dois ou três membros de uma família dentro do movimento (que não são importantes), enquanto outros não têm nenhuma conexão com o movimento, mas também servem à GPU. Quando eu disse que o pai é do no ramo imobiliário, ele riu. Ele disse que esse é o esquema tradicional. “O trabalho da GPU corre nas dinastias familiares”. E especialmente as famílias judaicas em cidades de grandes comunidades judaicas. Ele considera que uma das duas principais pistas é a sistematização de todas as fases da família Ageloff. [173]
O SWP levou a sério a compreensão de Chambers sobre a dinâmica da GPU. Caso contrário, não teria se aproximado dele para perguntar sobre o papel de Sylvia Ageloff. Em resposta, Chambers deu uma resposta clara ao SWP sobre como a atividade de Ageloff se encaixava no padrão da GPU. Ele sugeriu que o partido poderia começar a investigar a probabilidade de uma “dinastia familiar” da GPU, e deixou claro que suas suspeitas não diminuíram com a histeria de Ageloff, que ele achava indicar que estava fingindo. O menos provável, disse, era que a conduta dela mostrasse que ela era inocente.
Embora a discussão com Chambers fosse confidencial e destinada a facilitar a investigação do próprio SWP sobre o assassinato, Joseph Hansen divulgou esse valioso material ao Departamento de Estado em setembro de 1940, sem a aprovação do SWP. O FBI levou a sério as sugestões de Chambers e ampliou a sua investigação. Em contraste, o SWP respondeu às informações de Chambers se recusando a conduzir uma investigação sobre Ageloff e as conexões de sua família com a GPU.
Juiz e promotor mexicanos recebem ameaças de morte
O responsável pelo caso na Cidade do México foi o juiz Raúl Carrancá Trujillo da Sexta Vara Criminal de Coyoacán. Sob a lei penal mexicana de 1940, a decisão de condenar ou absolver um réu era do juiz e não de um júri.
Para a GPU, a prisão de Ageloff e Jacson-Mornard representava um imenso risco de exposição. Com o assassino sob custódia da polícia mexicana, não seria tão fácil silenciá-lo, como fizeram com Sheldon Harte. A detenção de Ageloff, uma cidadã americana, tornava a situação mais difícil por haver o risco de exposição da rede da GPU nos EUA.
O Juiz Carrancá começou a receber ameaças de morte de stalinistas, advertindo-o para que não expusesse a rede da GPU por trás do crime. Em uma dessas cartas, agora no arquivo nacional mexicano, está escrito:
Quaisquer medidas que você tomar no julgamento de Jacques Mornard pelo assassinato de Trotsky que tendam a fazê-lo declarar que é um agente da GPU, esclarecendo uma questão internacional de profunda e séria importância, você pagará muito caro. Lembre-se que a poderosa ação de uma organização se infiltrou em uma casa que se pensava ser inacessível. [174]
Essa ameaça em si era a admissão de uma trama mais ampla e confirmava que a GPU era responsável pela infiltração “em uma casa que se pensava ser inacessível”. Em outra ameaça, está escrito: “Tenha muito cuidado Raúl, porque muito em breve a GPU o colocará no caixão”.
O promotor Cabeza de Vaca recebeu ameaças semelhantes. Victor Serge apontou que “Francisco Cabeza de Vaca havia sido ameaçado de assassinato várias vezes”. [175] O neto de Cabeza de Vaca, Daniel Cabeza de Vaca (que foi Procurador Geral do México entre 2005 e 2006), explicaria mais tarde que as ameaças estavam especificamente relacionadas à sua decisão de investigar Ageloff e que seu avô foi “ameaçado em várias ocasiões por não permitir a soltura de Sylvia Ageloff”. [176]
Promotor pede prisão de Ageloff e a acusa de homicídio
Apesar dessas ameaças, quando a investigação preliminar foi concluída, o promotor Cabeza de Vaca acusou tanto Ageloff quanto Mercader de homicídio. Ele pediu que ambos fossem presos até o fim do processo criminal.
A acusação, escrita em forma jurídica própria do processo penal mexicano, analisou as provas circunstanciais descobertas pela investigação e apresentou o seguinte argumento contra Ageloff:
Embora seja verdade que Sylvia não estava presente durante o ataque contra Trotsky, também é verdade que, devido à série de circunstâncias expostas neste processo, acredita-se que essa pessoa não desconhecia os planos desenvolvidos por Jackson ou Mornard, dado que ela sabia das tentativas anteriores dirigidas contra o agora falecido. Nessas circunstâncias, Sylvia, que parece ter desfrutado da amizade e confiança da família Trotsky, deve ter agido com desconfiança e cautela ao descobrir que poderia servir como um meio, como aconteceu, para que seu companheiro entrasse na casa ... especialmente porque a própria Sylvia sabia que Jackson não possuía nenhuma formação como marxista e muito menos como membro da Quarta Internacional ... pois ela sabia que seu companheiro, agora indiciado, havia mudado seu nome, pelo que se sabe não possuía emprego, havia utilizado um passaporte falso e também havia fornecido endereços falsos a ela, com tudo isso indicando que a mencionada Sylvia não era leal a Leon Trotsky, dado que ela não comunicou suas suspeitas a respeito de seu companheiro, e sem poder alegar ignorância porque ela é uma pessoa educada, que afirma possuir um diploma universitário. [177]
Os advogados de Ageloff se opuseram à moção, mas o juiz Carrancá aceitou o pedido de Cabeza de Vaca, concordou com os argumentos do promotor, declarou a sua descrença sobre o argumento de que ela poderia ser inocente e ordenou que Ageloff e Jacson-Mornard fossem presos.
Essa ordem não foi uma mera formalidade pré-julgamento. Barrón Cruz escreveu que, em 31 de agosto, “o juíz Carrancá Trujillo decidiu emitir um decreto de prisão formal contra Frank Jacson e Sylvia Ageloff, concluindo existirem provas suficientes do crime de homicídio para provar a responsabilidade de ambos (nossa ênfase)”. [178]
A imprensa mexicana noticiou amplamente a prisão de Ageloff. La Prensa escreveu: “Foi uma grande surpresa quando surgiu a notícia de que o juiz havia decretado a prisão formal” de Ageloff. [179]
Os advogados de Ageloff apresentaram outra moção para garantir a sua liberdade. Então o promotor Cabeza de Vaca apresentou uma resposta exigindo que ela fosse mantida na prisão até a decisão final do juiz quanto à acusação de assassinato. A resposta de Cabeza de Vaca aos advogados de Ageloff – novamente escrita no longo formato legal mexicano – resumiu o caso mexicano contra Ageloff:
Devido ao meio político no qual o Sr. León Trotsky operava ... nenhum dos simpatizantes e amigos que o visitavam com frequência evitava a sua perigosa situação, sob risco de ser a qualquer momento vítima de novas agressões ... nessas condições, aqueles que se referiam um ao outro como amigos do falecido possuíam uma desconfiança excessiva em analisar um ao outro em relação à segurança do falecido ao lidar com eles, e é lógico supor que uma atitude um tanto estranha em relação a esses amigos levantaria suspeita em outros, naturalmente ... uma suspeita impossível de ser contida. ... Sylvia Ageloff ... sabia que ele [Jacques Mornard] não possuía passado como marxista e muito menos como apoiador e membro da Quarta Internacional; é impossível supor que, quando o suspeito se mudou da Europa para os EUA e alterou seu nome para Frank Jackson, a estranha impressão que essa atitude deve ter causado em Sylvia não foi explicada por ele. ... As falsidades de Mornard a respeito das atividades em que ele alegava estar envolvido nos EUA, sabendo que elas [devem ter] aumentado as suspeitas de Sylvia a respeito do real propósito de Mornard viver com segredos ... ainda mais, Sylvia não poderia ter parado de exigir uma explicação satisfatória de seu companheiro após ter comprovado que ele não havia fornecido seu endereço verdadeiro nesta cidade algumas vezes.
A desconfiança excessiva de uma amiga leal ao Sr. Trotsky não poderia ter resultado no silêncio quando Sylvia viu seu companheiro amoroso, Mornard, na casa do falecido. ... é impossível supor que, se Sylvia fosse leal ao falecido, ela não teria comunicado as suas suspeitas sobre as reais intenções do suspeito. Se a própria Sylvia aceita que achou suspeita a atitude de Mornard quando ele demonstrou grande interesse no destino de dois espiões que foram presos, por que ela não informou alguém sobre as suas suspeitas e advertiu o falecido sobre o perigo que representava estar em contato com alguém que se comportava de forma insincera? Como se pode explicar que ela continuou sendo companheira amorosa dele?
Há apenas uma explicação lógica: Ageloff conhecia as verdadeiras intenções de Mornard sobre o atentado do dia 20 deste mês. Não há razão nenhuma para considerar Sylvia uma amiga leal do falecido, uma vez que os registros não mostram que ela tenha tomado qualquer atitude que tornasse tal lealdade aparente. O fato de que a suspeita agora finge grande tristeza pela morte de Trotsky e profundo ódio ao seu assassino não deve dar uma impressão positiva a ninguém que a julgue.
Nenhuma explicação é possível para o fato de que Sylvia poderia viver e ter viajado confortavelmente dos Estados Unidos para o México com um modesto salário mensal de US$124 sem que tenha aceitado dinheiro de Mornard, que a usou no México para realizar o plano homicida, com Sylvia sabendo dessa situação. Para provar que existia um entendimento prévio entre Sylvia e Mornard a respeito das ações que ele levou adiante, e que exige a prisão de ambos, basta mencionar que ela veio ao México:
1) em janeiro deste ano, com o propósito de passar férias curtas e, entretanto, permaneceu até março, época que corresponde aproximadamente àquela em que Mornard começou a visitar o Sr. Trotsky; 2) que, no dia dos eventos, ambos os detidos convidaram Schüssler para jantar, muito provavelmente para mantê-lo longe da casa do falecido; 3) o fato de Sylvia não ter ido com Mornard à casa em Coyoacán no dia 20 deste mês, uma ausência que favoreceu os planos de Mornard e é inexplicável, dada a amizade que Ageloff desfrutava naquela casa; e 4) a viagem planejada por ambos no dia seguinte ao ataque. [180]
Apesar das ameaças de morte contra ele naquele momento, o juiz Carrancá concordou com essa moção e se recusou a ordenar a liberdade de Ageloff.
Setembro de 1940: O promotor se prepara para acusar Hilda Ageloff
Segundo o Brooklyn Daily Eagle, o pai de Ageloff viajou pessoalmente para a Cidade do México para tentar obter a liberdade de sua filha. A edição de 24 de agosto de 1940 observa que Samuel Ageloff “chegará hoje” e que havia “viajado de avião de Washington”. Ele também escreveu ao Presidente Cárdenas e exigiu que o presidente interviesse para libertar a sua filha.
Menos de duas semanas depois, o Daily Eagle noticiou que os advogados de Ageloff temiam que Hilda também fosse presa pelas autoridades mexicanas como cúmplice no assassinato. A edição de 4 de setembro de 1940 diz:
Os advogados de defesa da Sra. Sylvia Ageloff, mulher do Brooklyn detida por ser cúmplice no assassinato de Leon Trotsky, apresentaram hoje um pedido no primeiro tribunal criminal da capital para obter uma liminar para impedir a prisão de sua irmã, Hilda, que chegou hoje de avião de Nova York. Os advogados explicaram que a medida era cautelar. ... A Srta. Hilda Ageloff estaria sujeita à prisão como cúmplice caso, ao prestar depoimento, revele alguma vez ter suspeitado de Frank Jackson, amigo de sua irmã, acusado de assassinato.
Em novembro, com Sylvia Ageloff ainda presa até a decisão do juiz sobre a acusação de assassinato, Cabeza de Vaca ameaçou prender Hilda e expandir a investigação para a família Ageloff. Nesse momento, Samuel Ageloff emitiu declarações públicas pedindo que o governo dos EUA ajudasse a garantir a liberdade de Sylvia.
Em 19 de novembro de 1940, o Daily Eagle publicou um artigo intitulado “Ageloff busca ajuda dos EUA para libertar a filha”. O artigo explicava:
Samuel Ageloff, da Rua Remsen, 76, cuja filha, Sylvia, está detida em um hospital da Cidade do México sob a acusação de ser cúmplice do assassinato de Leon Trotsky, apelou a Washington em busca de ajuda do Departamento de Estado para obter a liberdade de sua filha, anunciou hoje Alfred F. Ritter, advogado do pai.
Dezembro de 1940: Ageloff é solta
O caso colocou uma tremenda pressão sobre o governo mexicano tanto dos EUA quanto da URSS,. Em dezembro, aparentemente através de canais diplomáticos extraoficiais, foi feito um acordo para garantir a liberdade de Ageloff sem condenação.
Não está claro exatamente como a soltura de Ageloff foi assegurada. Porém, os relatórios do FBI implicam que um acordo havia sido feito entre autoridades de alto escalão. O FBI, que tinha pouca dúvida da culpa de Ageloff, acreditava ser mais provável que ela contasse o que sabia sobre as operações internas da GPU se a sua confissão não pudesse ser utilizada para condená-la a uma longa sentença de prisão pelo assassinato. Um relatório do FBI estabelece que discussões estavam em andamento entre os governos americano e mexicano sobre como lidar com Ageloff. O relatório afirma:
Entende-se confidencialmente que a garota será mantida por possivelmente mais uma ou duas semanas, e, depois, será liberada pelo juiz do Tribunal de Coyoacán, e autorizada a retornar aos Estados Unidos. Pode ser que o interrogatório adicional com ela nos Estados Unidos possa se desenvolver mais do que o difícil interrogatório dela no México (nossa ênfase). [181]
Cabeza de Vaca continuou a defender a prisão de Ageloff e a acusação de homicídio, convencido de que ele estava descobrindo uma rede da GPU com ligações importantes nos EUA e no México.
Porém, no final, Carrancá, cedendo à pressão, libertou Ageloff da prisão e decidiu que ela não era culpada de homicídio. Em sua curta decisão por escrito, Carrancá disse que baseou sua decisão no fato de que “Jacson e Ageloff sempre disseram que a supracitada Sylvia não tomou parte” no assassinato. [182] Ele não forneceu nenhum outro argumento em sua decisão.
Essa foi uma decisão política, que careceu de credibilidade jurídica. Carrancá e todos os envolvidos sabiam que essa lógica não tinha justificativa, pois, naquele momento, Jacson-Mornard estava mentindo sobre cada elemento de seu papel no assassinato. Mesmo seu verdadeiro nome não se tornaria conhecido até 1950. Entretanto, pressão suficiente foi exercida para que Ageloff fosse colocada em liberdade. Ela retornou a Nova York em dezembro de 1940.
Dezembro de 1940: Sylvia Ageloff se recusa a fornecer provas contra Jacson-Mornard
De volta à cidade de Nova York, repórteres perguntaram a Hilda Ageloff se Sylvia ou qualquer membro da família estava preparado para testemunhar contra Jacson-Mornard, cujo julgamento ainda estava em andamento na Cidade do México. A resposta de Hilda em nome de sua irmã foi: “No que nos diz respeito, o caso está encerrado”. [183]
Essa reação servia apenas aos interesses dos stalinistas. Uma apoiadora de Trotsky teria insistido em expor o verdadeiro papel de Jacson-Mornard. Na época, a GPU declarava que não estava envolvida no assassinato de Trotsky e a imprensa stalinista internacional, com o objetivo de desacreditar o movimento trotskista, divulgou a afirmação de que Jacson-Mornard era um trotskista desiludido. Se Sylvia Ageloff tivesse sido apenas uma vítima inocente, ninguém estaria em melhor posição do que ela para ajudar a investigação e expor as ligações de Jacson-Mornard com a GPU.
Entretanto, para os Ageloffs, o caso estava encerrado. Ao se recusar a fornecer informações ao SWP ou às autoridades, Hilda e Sylvia estavam auxiliando o assassino de Trotsky e protegendo a GPU.
Dezembro de 1940: Comunicado de imprensa de Sylvia Ageloff
Ao retornar a Nova York em dezembro de 1940, Sylvia Ageloff emitiu um comunicado de imprensa através da empresa do setor imobiliário de seu pai:
Eu quero aproveitar esta oportunidade para esclarecer algumas das notícias confusas publicadas nos jornais. Eu nunca apresentei Jacson a Leon Trotsky. Esse fato é claramente estabelecido pelas evidências que foram reunidas e podem ser corroboradas por qualquer um que deseje se dar ao trabalho de fazer isso.
Além disso, as provas e o testemunho estabeleceram de forma esmagadora, como o próprio juiz declarou em seu veredito, que eu fui a vítima de uma sequência de eventos sobre a qual eu era totalmente ignorante e não tinha controle.
Eu era uma admiradora e amiga pessoal do Sr. e da Sra. Leon Trotsky. Eu não tenho afiliações políticas.
Meu desejo mais forte agora é tentar deixar para trás o que aconteceu. Eu quero tentar voltar à vida de uma cidadã comum. Lamento estar muito doente no momento atual para dar entrevistas. [184]
Sylvia Ageloff estava mentindo do início ao fim. Não havia um pingo de verdade nessa declaração.
Não havia nada de “confuso” nas reportagens de jornal se referindo ao fato de que a polícia e os promotores mexicanos a acusaram pelo assassinato de Trotsky e a acusaram de ser uma agente da GPU.
Na verdade, ela apresentou Trotsky ao seu futuro assassino. Ageloff conseguiu que Jacson-Mornard e Trotsky se encontrassem pessoalmente em agosto de 1940, uma semana antes do ataque, quando ela o levou para a casa sem aviso prévio, surpreendendo Sedova, que acreditava ter marcado uma reunião apenas com Sylvia. Como resultado da discussão que ocorreu com Trotsky nessa data, Jacson-Mornard redigiu o “artigo” que Trotsky estava revisando quando foi atacado com uma picareta.
Além disso, Ageloff apresentou falsamente Jacson-Mornard à família Trotsky como seu “marido” dias antes do assassinato. Mais tarde, Sedova afirmaria que o assassino foi “recebido em primeiro lugar como o marido de Sylvia”. A mentira de Ageloff fortaleceu a imagem de Jacson-Mornard e permitiu que ele entrasse no complexo no dia do ataque. Além disso, a mentira sobre o casamento se tornaria um elemento central da motivação fictícia do assassino para cometer o assassinato, ou seja, que Trotsky havia sido contrário ao “casamento” de Jacson-Mornard com Ageloff.
Além dos eventos imediatamente anteriores ao assassinato, a declaração de Ageloff de que ela não apresentou Jacson-Mornard a Trotsky foi um encobrimento grosseiro de seu papel ao longo dos seus dois anos de colaboração.
Em cada etapa, Ageloff foi o elemento decisivo, integrando cada vez mais Jacson-Mornard ao movimento trotskista e, por fim, à casa de Trotsky. Em meados de 1938, ela o apresentou à liderança do movimento trotskista internacional e o levou à conferência de fundação da Quarta Internacional, onde o apresentou aos delegados. Ageloff o apresentou aos seus amigos do SWP em Nova York em 1939, aos Rosmers na Cidade do México no início de 1940, o levou para dentro da casa de Trotsky pela primeira vez em março, e, é possível supor legitimamente, apresentou Jacson-Mornard aos líderes do SWP que viajaram para a Cidade do México em junho. Ela o ajudou a evitar as autoridades da imigração americana quando ele foi aos EUA se encontrar com seus operadores da GPU em Nova York naquele mês e o ajudou a evitar ser detectado novamente enquanto retornava ao México para matar Trotsky.
A próxima declaração de Ageloff – de que o juiz Carrancá afirmou que as provas apresentadas durante o processo criminal no México “estabeleceram de forma esmagadora” que ela era “a vítima de uma sequência de eventos sobre a qual eu era totalmente ignorante e não tinha controle” – era também uma mentira.
Atualmente, o texto da decisão do juiz Carrancá está publicamente disponível, e não faz afirmações nesse sentido. A declaração de Ageloff de que o processo criminal a considerou “totalmente ignorante” das verdadeiras intenções de Jacson-Mornard foi desmentida por seu próprio testemunho, no qual ela reconhece que houve várias instâncias em que disse estar alertada sobre o comportamento suspeito de Jacson-Mornard. Quando foi presa, a sua afirmação não foi ser “totalmente ignorante”, mas que ignorou as inconsistências na história de Jacson-Mornard porque estava cega de amor. De volta aos Estados Unidos e fora da jurisdição das autoridades mexicanas que estavam atrás dela, ela podia se dar ao luxo de se proteger afastando-se ainda mais da verdade.
A afirmação de Ageloff de ter sido apenas “uma admiradora e amiga pessoal do Sr. e da Sra. Trotsky” que não possuía “afiliações políticas” foi outra mentira para se apresentar como uma pessoa tola que foi usada. Todos os envolvidos na investigação, incluindo as autoridades mexicanas, o FBI e o SWP, sabiam que Ageloff havia sido ativa na política socialista desde 1934, que estava presente na conferência de fundação da Quarta Internacional de 1938 e que havia sido membro do SWP. Porém, o SWP nunca questionou essas mentiras, e Ageloff desapareceu da cena pública.
Abril de 1943: A GPU assassina o promotor Cabeza de Vaca
Francisco Cabeza de Vaca, que acusou Ageloff, não teve a mesma sorte. Em abril de 1943, Jacson-Mornard foi condenado a 20 anos de prisão, retroativos à data do crime. Pouco depois da audiência que daria a sentença de Jacson-Mornard ter sido adiada, Cabeza de Vaca saiu às ruas no centro de Coyoacán e, de acordo com sua família, foi assassinado. O neto de Cabeza de Vaca, Daniel Cabeza de Vaca, que é um proeminente advogado do governo e foi procurador geral do México de 2005 a 2006, escreveu na introdução da análise da investigação feita por Barrón Cruz:
Entre todos os outros que intervieram na investigação do assassinato de Leon Trotsky, pouco ou nada foi dito publicamente sobre Francisco Cabeza de Vaca Acosta. Hoje, seu ressurgimento é bem merecido. …
Quando éramos crianças – meus irmãos, primos e eu –, minha avó nos contava com grande emoção sobre nosso avô. Em particular, ela nos dizia que precisávamos honrar a herança de amor pela justiça que nos havia sido dada por um homem que havia morrido por esse amor. Contando com os olhos avermelhados, ela nos disse que meu avô havia sido ameaçado para que parasse a investigação, que havia demonstrado muito mais cedo aquilo que mais tarde se tornaria conhecido e reconhecido, e que agora é história: a verdadeira identidade do assassino e a responsabilidade da GPU soviética no assassinato de Trotsky.
Minha avó se referiu ao assassinato de Trotsky como uma conspiração, e disse que os mesmos assassinos haviam assassinado meu avô. Ela nos dizia como meu avô se despediu dela; ele disse que os mesmos assassinos de Trotsky haviam injetado algo em sua pele quando ele deixou um restaurante no centro de Coyoacán, que o envenenaram e que não havia antídoto; ele deu a ela cópias do arquivo do caso e morreu em seguida. Depois, descobriram os dispositivos e o veneno que os assassinos stalinistas utilizaram.
Naquela época, a única prova que minha avó possuía eram as cópias da investigação que ele havia entregado secretamente a ela na sua morte, e o fato de que ela, aos trinta anos de idade e com seis filhos, teve que deixar sua casa em Coyoacán para se refugiar com sua família na cidade de León, Guanajuato. [185]
Daniel Cabeza de Vaca acrescentou:
Desde o início de seu complexo trabalho como homem responsável pela investigação de Trotsky, ele possuía a firme convicção de que Ramón não poderia ter agido sozinho, mas com o treinamento e o apoio de uma cobertura complexa. Infelizmente, meu querido avô, após ter sido ameaçado em várias ocasiões por não permitir a liberdade de Sylvia Ageloff – a ex-namorada de Ramón que permitiu que se aproximasse fatalmente de Trotsky –, morreu em circunstâncias suspeitas, exatamente no mesmo dia em que a sentença contra Ramón foi publicada, horas depois de ter aparentemente sido perfurado com uma substância estranha...
Por todas essas razões, poderia muito bem ser que o caso de Sylvia seja semelhante ou paralelo ao de Robert Sheldon Harte, que foi considerado inocente na época pelo próprio Trotsky, de ter participado do primeiro ataque contra Trotsky com David Alfaro Siqueiros, seu cunhado, Luis Arenal, e outros; porque Robert, assim como Sylvia, beneficiou-se da proximidade e da confiança de Trotsky e de sua família. Porém, conforme o tempo mostrou, paradoxalmente, Robert de fato agiu sob as ordens de Leonid A. Eitington, chefe da NKVD na Espanha, que havia sido amante de Caridad [del Rio, mãe de Mercader] e, mais tarde, o chefe de Sylvia e Ramón. [186]
O neto do promotor concluiu: “Nesse sentido, a publicação das informações e as descobertas recentes devem servir para apresentar novas hipóteses sobre o verdadeiro papel desempenhado por Sylvia, bem como por diferentes pessoas com as quais ela se relacionou”. [187]
Dezembro de 1950: Ageloff testemunha diante da Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara dos EUA
Dez anos após o assassinato, em dezembro de 1950, Hilda Ageloff, Sylvia Ageloff e Ruby Weil foram intimadas a comparecerem diante da Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara (HUAC) dos EUA. A audiência foi intitulada “Aspectos americanos do assassinato de Leon Trotsky”, e as três mulheres foram chamadas para testemunhar sobre o que sabiam do papel da GPU na preparação do assassinato. [188]
A HUAC não estava interessado no assassinato de Trotsky para punir os responsáveis pelo assassinato de seu adversário revolucionário. Em 1950, os investigadores do governo dos Estados Unidos estavam cientes da intersecção, em termos de pessoal, entre a operação da GPU para assassinar Trotsky e, mais tarde, a espionagem no programa nuclear americano durante a Segunda Guerra e no pós-guerra. A única razão pela qual a HUAC chamou Sylvia Ageloff como testemunha foi porque possuía razões para acreditar – ou ter certeza – que ela possuía informações significativas sobre a espionagem soviética nos Estados Unidos.
A audiência de dezembro, a última de quatro audiências investigando “Aspectos americanos do assassinato de Leon Trotsky”, ocorreu após a HUAC ter realizado três audiências sobre o envolvimento do Partido Comunista dos EUA em um esquema malsucedido de lavagem de dinheiro para o México para garantir a liberdade de Jacson-Mornard de uma prisão mexicana. Como parte da investigação, além das Ageloffs e de Weil, outros oito agentes suspeitos da GPU testemunharam publicamente.
Seis meses antes da audiência, em junho de 1950, a editora Harper and Brothers lançou o segundo livro de Louis Budenz, Men Without Faces (Homens sem rostos), que apontava para a existência de uma rede muito mais ampla da GPU. Budenz disse que uma agente da GPU chamada “Helen” estava trabalhando dentro do SWP, e descreveu como ele havia recrutado Ruby Weil para se tornar uma agente da GPU, a enviando para a Europa, onde ela e Sylvia Ageloff se encontrariam com Mornard-Jacson.
Três semanas antes da audiência de dezembro de 1950 com as Ageloffs, a HUAC registrou uma declaração juramentada enviada por Budenz. A declaração incluía detalhes específicos dos agentes da GPU com os quais ele havia trabalhado se infiltrando no movimento trotskista e organizando o assassinato de Trotsky. Pela primeira vez, Budenz apontou “Helen” pelo nome. Ela era Sylvia Franklin (seu sobrenome de solteira era Callen), secretária de James P. Cannon. Ele também disse que, enquanto estava no Partido Comunista, ele possuía “uma série de agentes do grupo stalinista infiltrados no campo trotskista”. [189]
Budenz explicou que havia muito mais pessoas que ele estava preparado para revelar publicamente como agentes da GPU se a necessidade surgisse. “Havia também um grande número de pessoas, além das mencionadas, que eu apresentei” ao líder da GPU, Dr. Gregory Rabinowitz, escreveu. [190] A última frase de sua declaração diz: “Caso outros detalhes sejam necessários neste caso trotskista, e há vários que eu não revelei, eu sempre estarei disponível para ser útil ao Congresso”. [191]
Nesse contexto, Sylvia Ageloff testemunhou diante da HUAC. A audiência de 4 de dezembro de 1950 durou apenas 75 minutos, das 11h às 12h15. A própria audiência foi precedida por várias entrevistas entre os chamados a depor e os investigadores do governo dos EUA. Conforme Ruby Weil reconheceu, antes da audiência, ela havia “contado essa história várias vezes ao pessoal do governo”. [192]
A transcrição do testemunho de Sylvia Ageloff tem apenas seis páginas. Ela foi tratada com a cortesia que os congressistas e advogados da comissão reservavam para ex-agentes que se tornaram informantes. Respeitosamente, eles decidiram deixar de mencionar que Ageloff havia sido presa e acusada pelo assassinato de Trotsky no México.
Ageloff declarou que sua viagem à Europa, em 1938, foi “apenas uma viagem por prazer”. [193] Ela disse que, quando conheceu Jacson-Mornard, “em primeiro lugar, eu não disse a ele que eu era uma trotskista”. [194] Ageloff disse ao comitê que não possuía “informações diretas” sobre como o assassino obteve acesso à casa de Trotsky. [195] Ela disse que não havia nada indicando que Jacson-Mornard era um agente da GPU. [196]
Um advogado da comissão perguntou: “Você se sentiu de alguma forma involuntária ou inconscientemente envolvida nisso?” Ela respondeu: “Eu estava envolvida na medida em que suponho que, se nunca o tivesse conhecido, eu acho que ele não teria conseguido entrar na casa de forma alguma. Porém, devo dizer, para que fique registrado, que eu nunca o levei para a casa. ... A Sra. Trotsky confirmou isso.” [197] Quando questionada: “Você trabalhava para Leon Trotsky na Cidade do México?”, ela respondeu: “Não. Eu fui visitá-lo. Eu estive lá uma vez por exatamente meia hora”. [198] O depoimento de Hilda Ageloff estava de acordo com a versão contada por Sylvia.
A HUAC sabia que essas declarações eram falsas e, evidentemente, Ageloff não temia ser acusada de mentir sob juramento. O julgamento mexicano e a própria investigação contemporânea do FBI haviam estabelecido que Ageloff havia apresentado Jacson-Mornard a todos os seus amigos do movimento trotskista, que ela não visitou a casa Trotsky apenas uma vez, mas em várias ocasiões entre janeiro e março de 1940 e entre 9 e 20 de agosto. Além disso, ela havia levado Jacson-Mornard à casa de Trotsky no final de março, antes de retornar aos Estados Unidos, e novamente quando retornou à Cidade do México em agosto.
Significativamente, durante seu depoimento, Ageloff utilizou duas vezes o termo depreciativo “Trosko” (“Trotskyite”, em inglês), um termo utilizado pelos stalinistas. Por sua associação a assassinatos e incriminações em massa, era um termo que as pessoas ligadas ao movimento trotskista jamais empregariam.
Após a audiência, a HUAC publicou um resumo oficial dos depoimentos:
Em relação às declarações das irmãs Ageloff, é constatado que, por seus nomes serem mencionados em conexão com este assunto por outras fontes, elas viveram momentos difíceis. A comissão gostaria de declarar em seu nome que elas cooperaram plenamente com a comissão e forneceram informações valiosas durante esta investigação em particular, apesar do risco pessoal envolvido por sua atuação. [199]
As “outras fontes” mencionadas no resumo eram os outros agentes da GPU que o governo ouviu durante a sua investigação. O registro mostra que elas incluíam o ex-recrutador da GPU, Louis Budenz, e vários agentes da GPU envolvidos na tentativa de tirar Jacson-Mornard da prisão na Cidade do México. Muito provavelmente também incluía alguns dos agentes que Budenz havia denunciado. Se a comissão interrogasse Whittaker Chambers, o que era provável dada a sua colaboração consistente com a HUAC, ele teria dado sua opinião de que Sylvia Ageloff era uma agente. Essas fontes haviam “mencionado” os nomes das irmãs Ageloff “em conexão com esse assunto”. Em outras palavras, vários agentes da GPU disseram à HUAC que a própria Sylvia Ageloff era uma agente da GPU envolvida na execução do assassinato de Trotsky.
O resumo também afirma que Ageloff “cooperou plenamente” e “forneceu informações valiosas” para a comissão. As informações seriam valiosas apenas na medida em que avançassem o objetivo expresso da investigação da comissão, que era descobrir os agentes da GPU envolvidos na trama do assassinato de Trotsky. As suas declarações de 4 de dezembro de 1950 não poderiam ter sido valiosas para o governo, pois eram apenas uma repetição da sua conhecida alegação de ter se apaixonado por Jacson-Mornard, que permaneceu preso no México. As informações valiosas que forneceu devem ter sido oferecidas em particular, e devem ter incluído os nomes dos agentes da GPU que conhecia.
O resumo da comissão também menciona o “risco pessoal” que as irmãs enfrentaram como resultado da sua colaboração com o governo dos EUA. Isso não poderia ter sido uma referência ao SWP, que não mostrou nenhum interesse em desmascarar os agentes stalinistas que operavam em seu meio e não informou sobre a audiência na imprensa do partido. A única explicação razoável é que a HUAC estava fazendo referência ao “risco pessoal” que as irmãs Ageloff poderiam enfrentar por conta da GPU.
Ao longo dos anos após as declarações de Ageloff na audiência da HUAC, o governo utilizou as informações adquiridas nessas primeiras investigações para acusar muitos agentes da GPU que haviam se envolvido em atividades “antitrotskistas” nos anos 1930 e 1940. O governo americano se interessou por esses agentes quando trocaram a espionagem antitrotskista pela espionagem militar e nuclear após o assassinato de Trotsky. Jack Soble foi preso em 1957, Mark Zborowski em 1958 e o irmão de Soble, Robert Soblen, em 1960. A secretária de James P. Cannon, Sylvia Franklin, e o membro do SWP, Floyd Cleveland Miller, foram apontados como co-conspiradores não indiciados na acusação de Soblen.
Quando esses julgamentos aconteceram, apenas 20 anos haviam se passado desde o assassinato de Trotsky. Embora a acusação e as condenações tenham confirmado que membros de alto escalão do movimento trotskista haviam sido agentes da GPU, os julgamentos e seus resultados não foram noticiados na imprensa do SWP. O FBI estava conduzindo investigações, mas o SWP não estava.
Vinte e seis anos depois, o FBI e J. Edgar Hoover continuaram a monitorar estreitamente as discussões sobre o papel de Ageloff como cúmplice. Em 17 de outubro de 1966, Hoover recebeu uma carta de um indivíduo cujo nome foi censurado em arquivos publicados posteriormente pelo FBI. O indivíduo faz referência ao livro de Isaac Don Levine, Mind of an Assassin (A mente de um assassino), e pergunta:
Você poderia me informar por que as duas garotas americanas que foram fundamentais para possibilitar a entrada do assassino condenado na casa de Leon Trotsky na Cidade do México nunca foram alvo de um pedido de extradição pelo governo mexicano para julgamento nesse país? O livro não faz nenhuma menção a isso. Até que ponto essas cúmplices do assassinato são responsáveis, seja aqui ou no México?
Hoover respondeu pessoalmente em 20 de outubro de 1966:
Em relação à sua investigação, o assunto a que se referiu não foi uma violação dentro da jurisdição de investigação do FBI e, portanto, não posso comentar da forma que deseja. Uma vez que o assassinato de Leon Trotsky ocorreu no México, qualquer processo contra os indivíduos envolvidos teria que ser iniciado pelas autoridades desse país.
Nessa resposta, Hoover omitiu o fato de que Sylvia Ageloff foi processada pelas autoridades do México, e que a acusação também queria indiciar Hilda Ageloff. A omissão de Hoover parece ter tido como objetivo impedir que o questionador soubesse como a liberdade das irmãs Ageloff foi garantida.
O destino de Ramón Mercader e Sylvia Ageloff
Ramón Mercader foi solto da prisão no México em maio de 1960. Ele foi colocado sob a custódia de diplomatas tchecos e transportado para a União Soviética a partir de Cuba, onde o assassino foi recebido como herói no aeroporto de Havana pelo líder da guerrilha pequeno burguesa e feroz antitrotskista, Che Guevara.
Em janeiro de 1977, o Comitê Internacional da Quarta Internacional publicou informações, baseadas em pesquisas realizadas no México por David North e Alex Mitchell (então editor do jornal News Line, publicada pelo britânico Workers Revolutionary Party (WRP, Partido Revolucionário dos Trabalhadores)), estabelecendo, com base na correspondência entre Mercader e seu advogado, Eduardo Ceniceros, que Mercader estava na União Soviética de férias na região de Donetsk, na Ucrânia.
Enquanto ele vivia na União Soviética, a burocracia stalinista lhe concedeu a maior honraria do país, a Ordem de Lenin, e o colocou em um confortável apartamento onde mantinha contato regular com a liderança exilada do Partido Comunista da Espanha. Ele viajou com frequência entre a União Soviética e Cuba, onde era um convidado de honra e um contato pessoal de Fidel Castro. Ele morreu em Cuba em 1978, aos 65 anos de idade.
Sylvia Ageloff viveu uma vida confortável em Nova York e morreu em 1995 aos 86 anos de idade, tendo vivido por mais de meio século após os acontecimentos em Coyoacán.
Em 2011, sua amiga íntima, Lillian Pollak, foi entrevistada em seu apartamento em um distrito rico de Manhattan. Sylvia Ageloff “vivia muito próximo daqui”, disse, “em um lindo apartamento”. [200] Parentes distantes das irmãs Ageloff disseram que nunca ouviram nada sobre as irmãs através de sua própria família, e que a única informação que puderam apurar sobre as suas vidas foi através de obituários públicos. [201] De acordo com o FBI, Sylvia operava uma creche no subúrbio de Nova York e, depois de fornecer “informações valiosas” sobre a GPU ao governo americano, não enfrentou grandes inconveniências sobre o seu papel no assassinato de Trotsky.
Conclusão
Com base em todas as informações agora disponíveis, é possível substituir o mito da “pobre Sylvia” por um relato preciso do seu papel na catástrofe política de 20 de agosto de 1940. A pessoa real toma finalmente o lugar da personagem construída.
Quem era Sylvia Ageloff? As evidências levam esmagadoramente à conclusão de que ela era uma agente da GPU que desempenhou um papel decisivo no assassinato de Leon Trotsky.
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Referências:
[As referências não listadas abaixo estão disponíveis nas partes um, dois ou três.]
[161] O conhecimento público do verdadeiro nome de Mercader entre 1949 e 1950 foi resultado da investigação conduzida por Alfonso Quiroz Cuarón.
[162] Barrón Cruz, p. 59.
[163] Ibid., p. 76.
[164] Ibid., p. 83.
[165] Ibid., p. 60.
[166] Ibid., p. 61.
[167] Ibid., p. 54.
[168] Ibid., p. 76.
[169] Relatório do FBI de 5 de setembro de 1940, “Re: Murder of Trotsky in Mexico,” enviado por J.B. Little to H.H. Clegg.
[170] New York Times, 22 de agosto de 1940, “Trotsky Dies of His Wounds; Asks Revolution Go Forward.”
[171] Memorando do FBI de 29 de agosto de 1940, re: “Murder of Leon Trotsky”.
[172] Ibid. Em uma entrevista de 1977 com David North, realizada como parte da investigação Segurança e a Quarta Internacional, o agente do FBI M.R. Griffin, que esteve envolvido ativamente na investigação dos stalinistas envolvidos no assassinato, disse acreditar que Ageloff era uma agente da GPU.
[173] The Gelfand Case, Volume I (Detroit: Labor Publications, 1985), p. 15.
[174] Luri, pp. 259–60.
[175] Ibid., p. 280.
[176] Barrón Cruz, p. xix.
[177] Ibid., p. 67.
[178] Ibid., p. 77.
[179] Ibid., p. 82.
[180] Ibid., pp. 83–85.
[181] Memorando do FBI de 29 de agosto de 1940, re: “Murder of Leon Trotsky”.
[182] Barrón Cruz, p. 179.
[183] Luri, p. 272.
[184] Eric Gurevitch, “Thinking with Sylvia Ageloff,” Hypocrite Reader, agosto de 2015. Disponível aqui.
[185] Barrón Cruz, pp. xiv–xv.
[186] Ibid., pp. xix–xx.
[187] Ibid.
[188] Ruth Ageloff também foi intimada a comparecer na audiência, mas, segundo o procurador do gabinete do comitê, ela estava doente. O comitê decidiu não requerer que ela enviasse provas oficialmente e sob juramento.
[189] Ibid., p. vi.
[190] Ibid., p. ix.
[191] Ibid.
[192] American Aspects of the Assassination of Leon Trotsky, US House of Representatives Committee on Un-American Activities, 1950, p. 3,416.
[193] Ibid., p. 3,402.
[194] Ibid., p. 3,403.
[195] Ibid., p. 3,404.
[196] Ibid.
[197] Ibid, p. 3,406.
[198] Ibid.
[199] Ibid., p. xiv.
[200] Veja nota 51. Disponível aqui, pp. 15–16.
[201] Entrevista com Amy Feld por Eric London, 17 de agosto de 2020; entrevista com Eric M. Gurevitch por Eric London, 17 de agosto de 2020.