Publicado originalmente em 10 de Abril de 2019
A ameaça de uma sangrenta batalha por Trípoli é cada vez maior, com o general e “senhor da guerra” Khalifa Haftar reunindo tropas e tanques ao sul da capital líbia e aviões de guerra de seu assim chamado Exército Nacional Líbio bombardeando o único aeroporto da cidade, impedindo que civis deixem o país.
Os números parciais incluem 51 mortos e mais de 181 feridos. Milhares de pessoas tiveram que deixar suas casas para escapar dos combates, e há relatos de que milhares de refugiados e imigrantes, mantidos em terríveis condições em campos de concentração de várias milícias rivais, estão desesperados com a perspectiva de se tornarem vítimas indefesas de um potencial massacre.
Em meio à escalada em direção à uma guerra civil de grandes proporções, a alta comissária para os direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, alertou que qualquer ataque contra civis na Líbia pode resultar em crimes de guerra e exigiu que todos os lados envolvidos “respeitem a lei humanitária internacional” e “tomem todas as medidas possíveis para proteger civis e infraestruturas civis, incluindo escolas, hospitais e prisões.”
A atitude da Comissão de Direitos Humanos da ONU em relação à escalada da violência na Líbia contrasta com sua resposta à guerra unilateral dos EUA e da Otan lançada em 2011 sob o pretexto de proteger vidas civis da repressão do governo do coronel Muammar Gaddafi. Uma resolução da ONU que estabeleceu uma zona de exclusão aérea foi utilizada como pretexto para lançar uma campanha de bombardeios de sete meses em apoio às milícias islâmicas auxiliadas pela CIA, que teve o objetivo de destruir as forças de segurança da Líbia e sua infraestrutura vital e derrubar seu governo. Essa campanha culminou no intenso bombardeio da cidade costeira de Sirte, onde Gaddafi nasceu e seu bastião político, e na tortura e assassinato do próprio Gaddafi.
Os defensores dos direitos humanos da ONU calaram-se ao longo desta campanha de massacre imperialista, cujas vítimas chegaram a dezenas de milhares, um número muito maior do que qualquer estimativa de pessoas mortas pela repressão do regime de Gaddafi.
Somente em março de 2012, meses após o fim da operação de mudança de regime, a Comissão de Direitos Humanos da ONU divulgou um relatório que permitiu “confirmar vítimas civis e encontrar alvos que não apresentavam evidências de ter qualquer função militar”. Essa investigação se limitou a apenas 20 ataques aéreos, quando o número total de bombardeios foi 1.000 vezes maior.
A crise atual e a ameaça de um banho de sangue na Líbia são o produto direto da intervenção supostamente “humanitária” realizada há oito anos sob a bandeira fraudulenta da “Responsabilidade de Proteger” (R2P), que foi defendida pelos liberais do imperialismo em relação aos povos oprimidos de antigos países coloniais onde as grandes potencias continuam exercendo seus interesses estratégicos.
Entre os protagonistas de ambos os lados do conflito em desenvolvimento estão os chamados “revolucionários” e “democratas” que supostamente a guerra iria proteger. Entre eles está o próprio Khalifa Haftar, o ex-general de Gaddafi que foi levado para Benghazi depois de passar décadas como um trunfo da CIA dos EUA e de ter morado próximo a sua sede em Langley, no estado da Virgínia, onde obteve a cidadania estadunidense.
Um papel indispensável na promoção da intervenção “humanitária” na Líbia pelos EUA e seus aliados da Otan foi desempenhado por um grupo de organizações políticas, políticos e acadêmicos da pseudo-esquerda que amplificaram e embelezaram os falsos pretextos defendidos por Washington, Paris e Londres para uma guerra de agressão imperialista contra um antigo país colonial.
Entre os que apoiaram a guerra estava o professor da Universidade de Michigan, Juan Cole, cujo site Informed Comment tinha ganhado seguidores por sua limitada oposição à guerra do Iraque e suas críticas à política israelense.
Cole expressou seu entusiasmo pela intervenção dos EUA e da Otan na Líbia declarando: “Se a Otan precisar de mim, eu estarei lá”. Agora que conflitos de grandes proporções estão novamente ocorrendo na Líbia, não se sabe se o professor Cole sente uma vontade renovada de vestir seu uniforme, e se o fizer, se ele escolheria subir em um dos tanques do Khalifa ou pegar uma das metralhadoras das milícias de Trípoli.
No início da guerra, Cole publicou “Uma Carta Aberta à Esquerda” na qual exigia que os chamados “esquerdistas” “aprendessem a mascar chiclete e andar ao mesmo tempo”, ou seja, a posar de esquerdistas ao mesmo tempo que apoiavam a guerra imperialista.
A “esquerda”, ele insistiu, deve determinar sua atitude em relação às guerras lançadas pelos EUA analisando “caso por caso”, declarando que “Fazer com que o ‘anti-imperialismo’ prevaleça diante de outros valores de uma forma irracional leva a posições francamente absurdas”.
Cole disse que estava “torcendo descaradamente pelo movimento de libertação e contente que a intervenção autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU o impediu de ser esmagado”.
A redução do anti-imperialismo por Cole a um “valor” subjetivo que deve ser contraposto a outros igualmente importantes, como “direitos humanos”, expõe a perspectiva completamente pequeno-burguesa e antimarxista de sua defesa da guerra imperialista.
Esses ideólogos pequeno-burgueses rejeitam a concepção de que o imperialismo é uma etapa econômica, social e política objetiva do desenvolvimento histórico do capitalismo, que se baseia na monopolização da economia, no domínio do capital financeiro e na divisão de todo o planeta por um punhado de países capitalistas avançados – um período de guerra e revolução globais. Ao invés disso, eles afirmam que é apenas um excesso cometido por um sistema saudável, que é também capaz de realizar resgates “humanitários” de populações oprimidas.
Um papel parecido, se não ainda mais reacionário, foi desempenhado por Gilbert Achcar, um acadêmico da Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres, que serviu como principal propagandista das guerras na Líbia e na Síria para o site pablista International Viewpoint (ligado no Brasil à organização Insurgência, uma tendência interna do PSOL). No início da guerra, em março de 2011, Achcar deu uma entrevista elogiando a intervenção dos EUA e da Otan na Líbia. Segundo ele, “ ... dada a urgência de impedir que um ataque a Bengazhi pelas forças de Gaddafi resulte em um massacre, e na ausência de qualquer outra maneira de impedir que isso aconteça, ninguém pode razoavelmente se opor [à intervenção] ... Você não pode em nome de princípios anti-imperialistas se opor a uma ação que impedirá o massacre de civis”.
Depois que a guerra acabou, as alegações de um iminente massacre em Benghazi provaram ser uma pura invenção.
Com a continuidade da guerra, Achcar se tornou um defensor ainda maior da mudança de regime imperialista, exigindo que os EUA e outras potências ocidentais entregassem mais armas à “insurgência” e, em agosto de 2011, repreendendo-os por não entregarem quantidades suficientes de munições sobre a população líbia, descrevendo os ataques aéreos – que deixaram milhares de mortos – como “moderados”.
Praticamente os mesmos argumentos voltariam a ser repetidos na guerra de mudança de regime na Síria, com charlatães políticos como Achcar e Ashley Smith, da recentemente dissolvida Organização Internacional Socialista (ISO, na sigla em inglês), exigindo mais armas para a “revolução” orquestrada pela CIA na Síria e condenando a administração Obama por não impor suas “linhas vermelhas”, o que incluía um possível confronto nuclear com a Rússia para derrubar o governo de Bashar al-Assad.
A política desses canalhas e suas organizações nada tem a ver com o marxismo, e qualquer que seja a retórica “socialista” que utilizam nada mais é do que uma cobertura para sua integração irrestrita à política burguesa imperialista. Eles funcionam como uma espécie de ONGs especializadas, que agem de forma muito semelhante ao “National Endowment for Democracy” (NED, Fundo Nacional para a Democracia) e servem como frentes políticas e ligações para as operações da CIA e do imperialismo dos EUA.
Nunca nenhum desses autoproclamados “socialistas” questionou os motivos humanitários dos lobos imperialistas no Oriente Médio. Eles descartaram de imediato qualquer sugestão de que sua guerra na Líbia fosse motivada pelo desejo das grandes potências imperialistas e seus conglomerados energéticos de exercer controle irrestrito sobre as reservas de petróleo do país, as maiores do continente africano. Ou, por falar nisso, que a guerra na Síria foi provocada com o objetivo de instalar um regime fantoche dos Estados Unidos em um país que há muito tem sido uma encruzilhada estratégica do Oriente Médio.
Quanto aos “revolucionários” que apoiaram na Líbia e na Síria, nem Cole, Achcar, Smith ou qualquer outro pseudo-esquerdista conseguiu oferecer um programa a favor do qual eles estavam supostamente lutando, uma análise das forças de classe que eles representavam ou mesmo o nome de um suposto líder que poderia falar de seus objetivos. Por trás desse muro de silêncio, está o fato de que os criminosos armados e apoiados pela CIA, mobilizados contra Gaddafi e Assad, eram dominados por ativos da CIA e por milícias islâmicas, com as forças ligadas à Al Qaeda como seu elemento predominante.
Em sua declaração de 2016, Socialismo e a Luta Contra a Guerra, o Comitê Internacional da Quarta Internacional estabeleceu os fundamentos da transformação de tendências políticas radicalizadas da classe média que surgiram como parte do movimento contra a guerra do Vietnã em apoiadoras das intervenções imperialista:
Nas últimas quatro décadas, esses setores passaram por uma profunda transformação social e política. O rápido crescimento nos valores das ações – facilitado pela contínua imposição de cortes salariais e a retirada de benefícios dos trabalhadores, pelo aumento da taxa de exploração e pela extração de uma nunca tão grande mais-valia da classe trabalhadora – ofereceu aos setores privilegiados da classe média acesso a um grau de riqueza que não podiam imaginar no início de suas carreiras. O boom prolongado do mercado de ações permitiu ao imperialismo recrutar um novo e devoto eleitorado da classe média alta. Essas forças – e as organizações políticas que expressam seus interesses – fizeram tudo o que foi possível não só para acabar com a oposição à guerra, mas também para justificar operações predatórias do imperialismo.
Os anos que se seguiram à publicação dessa declaração têm visto apenas uma intensificação da desigualdade e da polarização social, juntamente com um aumento global na luta de classes que está empurrando essas tendências ainda mais à direita.
Os eventos na Líbia tornam ainda mais claro que esses cúmplices da intervenção imperialista têm sangue em suas mãos. A educação política da classe trabalhadora exige que eles sejam expostos como os reacionários e criminosos políticos que são.